Saúde da Mulher e as Oportunidades Perdidas 402

Em Setembro do ano passado várias notícias em Portugal e no estrangeiro fizeram referência a um relatório da revista Lancet sobre a desigualdade de género nos cuidados de saúde (não associada a factores biológicos).(1,2,3,4) O estudo inclui dados de 185 países e conclui que a desigualdade está a prejudicar o acesso das mulheres à prevenção e tratamento do cancro.(5) Inspirada por esta série de notícias, achei que seria interessante investigar com maior detalhe o ponto da situação da desigualdade de género em saúde no mundo mais ocidental, incluindo Europa e Portugal.

O indicador de género (à nascença) é um dos principais determinantes do estado de saúde, e é por isso recolhido e estudado com bastante consistencia e regularidade.(6,7) Existem inúmeros estudos que tentam perceber as diferenças de saúde associadas ao género a nível de vários fatores, desde a incidência, à progressão da doença e mortalidade.(7) No entanto, ao longo da última década surgiram vários estudos que indicam que estas diferenças podem ser explicadas em parte por diferenças no acesso e rapidez de tratamento, bem como pela baixa representatividade da mulher em ensaios clínicos e pela desigualdade no investimento em investigação médica.

Uma análise recente do investimemento público em saúde publicada no Reino Unido concluiu que menos de 2,5 por cento da investigação financiada pelo Estado é dedicada exclusivamente à saúde reprodutiva, apesar de uma em cada três mulheres no país sofrer de um problema de saúde reprodutiva ou ginecológica.(8) A disfunção erétil, que afeta 19% dos homens, em 2016 tinha sido foco de 5 vezes mais estudos do que o síndrome pré-menstrual, que afeta 90% das mulheres.(9) Também na saúde mental, segundo um outro estudo de 2017, as mulheres foram mais medicadas e menos seguidas pelos médicos de medicina geral e familiar (General Practitioners).(10)  Já nos Estados Unidos, apesar das doenças cardiovasculares serem mais comuns em homens, não deixam de ser a causa principal de morte também das mulheres, que correspondem apenas a um terço dos participantes em ensaios clínicos para novos tratamentos.(11)

A baixa participação das mulheres em ensaios clínicos foi impulsionada no final da década de 1950 e início da década de 1960, quando o uso da talidomida por mulheres grávidas resultou no que é considerado por algumas fontes no “maior desastre médico de sempre”, com mais de 10.000 crianças nascidas com deformidades graves.(12) Depois deste desastre, em 1977, a entidade reguladora do medicamento nos Estados Unidos (Food and Drug Administration (FDA)) proibiu todas as mulheres em idade fértil de participarem em ensaios clínicos de fase 1 e 2.(13) A FDA reverteu esta decisão em 1993, quando começou a encorajar mulheres a participarem em estudos médicos.(14)

Esta falta de representatividade das mulheres (e de grupos minoritários, de que não falo aqui) tem consequências graves para a população. Voltando às doenças cardiovasculares, os principais sintomas de ataque cardíaco são geralmente associados a uma dor no peito que se estende até ao braço esquerdo. No entanto, as mulheres muitas vezes apresentam outros sinais, como uma dor no pescoço ou náusea, que por serem menos conhecidos (e investigados) podem atrasar tanto a reacção da paciente, como o diagnóstico. Este foi um dos motivos que pode ter levado ao elevado número de mortes por ataques cardíacos em mulheres em Inglaterra e no País de Gales na década de 2000.(15,16)

Um estudo de grande escala realizado na Dinamarca, utilizou dados de 6,9 ​​milhões de pessoas recolhidos ao londo de um período de 21 anos, e analisou diferentes aspectos da desigualdade de género em indicadores de saúde.(18) De acordo com os resultados, as mulheres demoraram mais tempo a receber diagnósticos em mais de 700 doenças – à exceção de algumas como a osteoporose. No caso do cancro, esta demora foi em média de mais dois anos e meio do que os homens e, no caso da diabetes, o tempo extra para o diagnóstico (nas mulheres) foi, em média, de 4 anos e meio.(17)

Apesar de viverem mais tempo, as mulheres vivem com menos saúde durante mais 25% do tempo do que os homens.(19) Dados de Portugal vão ao encontro da evidência internacional – as mulheres Portuguesas vivem mais, mas estão mais tempo doentes.(20) Os motivos que determinam o que parece ser uma contradição têm sido associados à relação das mulheres com a doença e à tendência para procurarem tratamento mais cedo, que previne a morte precoce. Em termos de acesso, o tempo de espera para ser admitida para cirurgia é 3% superior para as mulheres, o que é um resultado bastante inferior (e melhor) do que o previsto pela literatura e evidência de outros países.(21) No entanto, há falta de investimento público em políticas e em investigação que permitam perceber as causas desta desigualdade no contexto Português e como pode ser diminuída.(7)

O subinvestimeto em saúde e investigação médica em mulheres representa uma perda de oportunidades e recursos para os cuidados de saúde mundial, do ponto de vista humano, científico e económico – as mulheres representam metade da população, metade da população activa e têm maior probabilidade de ser cuidadoras informais.(22) Investir na diminuição deste  hiato na saúde das mulheres é assim crucial, não só para garantir a igualdade no acesso universal da saúde, mas também para gerar ganhos substanciais de produtividade, rendimento e qualidade de vida para todos.(19) Felizmente, o que todos estes estudos também indicam é que a comunidade científica e algumas instituições internacionais estão a apostar na medição da magnitude e impacto desta desigualdade, o que gera mais conhecimento para o desenho de políticas públicas que possam pelo menos corrigir parte deste desequilíbrio.

Sara Valente de Almeida

Research Consultant UNU-WIDER

Referências

 

  1. SIC Notícias. Desigualdades de género dificultam acesso das mulheres a cuidados de saúde, 27 Setembro 2023, em: https://sicnoticias.pt/mundo/2023-09-27-Desigualdades-de-genero-dificultam-acesso-das-mulheres-a-cuidados-de-saude-59cae304
  2. El País. Las desigualdades de género empeoran el acceso de las mujeres a la prevención, detección y atención del cáncer, 27 Setembro, 2023 em: https://elpais.com/salud-y-bienestar/2023-09-27/las-desigualdades-de-genero-empeoran-el-acceso-de-las-mujeres-a-la-prevencion-deteccion-y-atencion-del-cancer.html
  3. The Telegraph. Sexism in healthcare is causing women to die from cancer, say researchers, 27 Setembro 2023, em: https://www.telegraph.co.uk/news/2023/09/27/sexism-healthcare-cancer-deaths-the-lancet/
  4. The Guardian. Feminist approach’ to cancer could save lives of 800,000 women a year, 26 Setembro 2023, em: https://www.theguardian.com/society/2023/sep/26/feminist-approach-cancer-save-lives-800000-women
  5. Ginsburg, Ophira et al. (2023). Women, power, and cancer: a Lancet Commission. The Lancet, Volume 402, Issue 10417, 2113 – 2166
  6. Verbrugge, L. M. (1985). Gender and Health: An Update on Hypotheses and Evidence. Journal of Health and Social Behavior, 26(3), 156–182. https://doi.org/10.2307/2136750
  7. Campos-Matos, I., Russo, G. e Perelman, J. (2016). Connecting the dots on health inequalities – a systematic review on the social determinants of health in Portugal. Int J Equity Health 15, 26 (2016). https://doi.org/10.1186/s12939-016-0314-z
  8. UK Health Research Analysis 2022 (UK Clinical Research Collaboration, (2023) https://hrcsonline.net/reports/analysis-reports/uk-health-research-analysis-2022/”.
  9. The Independent. Erectile dysfunction studies outnumber PMS research by five to one, 19 Agosto 2016, em: https://www.independent.co.uk/news/science/pms-erectile-dysfunction-studies-penis-problems-period-pre-menstrual-pains-science-disparity-a7198681.html
  10. Cooper C., Lodwick R., Walters K. , Raine R., Manthorpe J., Iliffe S. e Petersen I. (2017). Inequalities in receipt of mental and physical healthcare in people with dementia in the UK, Age and Ageing, Volume 46, Issue 3, May 2017, Pages 393–400, https://doi.org/10.1093/ageing/afw208
  11. Tobb K., Kocher M. e Bullock-Palmer R. P.(2022). Underrepresentation of women in cardiovascular trials- it is time to shatter this glass ceiling, American Heart Journal Plus: Cardiology Research and Practice, Volume 13,2022,100109,ISSN 2666-6022, https://doi.org/10.1016/j.ahjo.2022.100109.
  12. Vargesson N. (2015). Thalidomide-induced teratogenesis: history and mechanisms. Birth defects research. Part C, Embryo today : reviews105(2), 140–156. https://doi.org/10.1002/bdrc.21096
  13. Sheffield, J. S., Siegel, D., Mirochnick, M., Heine, R. P., Nguyen, C., Bergman, K. L., Savic, R. M., Long, J., Dooley, K. E. e Nesin, M. (2014). Designing drug trials: considerations for pregnant women. Clinical infectious diseases : an official publication of the Infectious Diseases Society of America, 59 Suppl 7(Suppl 7), S437–S444. https://doi.org/10.1093/cid/ciu709
  14. Ayuso E., Geller R. J., Wang J., Whyte J. e Jenkins M. (2019).Evaluation of worldwide clinical trials by gender: An FDA perspective,Contemporary Clinical Trials,Volume 80,2019,Pages 16-21,ISSN 1551-7144,https://doi.org/10.1016/j.cct.2019.03.007.
  15. The Guardian. Women are dying needlessly from heart attacks, says charity, 30 Setembro 2019 em: https://www.theguardian.com/society/2019/sep/30/women-are-dying-needlessly-from-heart-attacks-says-charity
  16. The British Heart Foundation (2019). Bias and biology: The heart attack gender gap, em: https://www.bhf.org.uk/what-we-do/in-your-area/wales/campaigning-and-influencing/bias-and-biology-the-heart-attack-gender-gap-wales
  17. Study: Across Diseases, Women Are Diagnosed Later Than Men, 10 Março 2019, em: https://www.cpr.ku.dk/cpr-news/2019/study-across-diseases-women-are-diagnosed-later-than-men/
  18. Westergaard, D., Moseley, P., Sørup, F. K. H., Baldi, P. e Brunak, S. (2019). Population-wide analysis of differences in disease progression patterns in men and women. Nature communications, 10(1), 666. https://doi.org/10.1038/s41467-019-08475-9
  19. World Economic Forum and the McKinsey Health Institute (2024). Closing the Women’s Health Gap: A $1 Trillion Opportunity to Improve Lives and Economies. World Economic Forum, em: https://www.weforum.org/publications/closing-the-women-s-health-gap-a-1-trillion-opportunity-to-improve-lives-and-economies/
  20. Perelman, J., Fernandes, A. e Mateus, C. (2012). Gender disparities in health and healthcare: results from the Portuguese National Health Interview Survey. Cadernos de saude publica28(12), 2339–2348. https://doi.org/10.1590/s0102-311×2012001400012
  21. Cima J., Guimarães P. and Almeida A. (2021). Explaining the Gender Gap in Waiting Times for Scheduled Surgery in the Portuguese National Health Service. Port J Public Health30 July 2021; 39 (1): 3–10. https://doi.org/10.1159/000514798
  22. Bird C. E., Underfunding of Research in Women’s Health Issues Is the Biggest Missed Opportunity in Health Care. RAND Blog, 11 Fevereiro 2022, em: https://www.rand.org/pubs/commentary/2022/02/underfunding-of-research-in-womens-health-issues-is.html

 

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