Cidadãos Parceiros na Saúde: O Desafio da Decisão Compartilhada na Era da Informação 1380

Um dos desafios que enfrenta a comunidade científica atualmente é fornecer a base intelectual para a transição de uma economia da saúde onde a utilização de cuidados de saúde é baseada na opinião do médico para um paradigma onde a procura é impulsionada pela escolha esclarecida dos cidadãos.

Em 1784, Immanuel Kant escrevia [1]:

“É tão cómodo não decidir por si próprio. Se eu tiver um livro que tem a compreensão por mim, um diretor espiritual que tem consciência moral por mim, um médico que decide por mim a minha dieta, etc., então não preciso de me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar e outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.”

Apesar da evolução da sociedade e da crescente valorização da liberdade individual, ainda persistem elementos de verdade nas palavras de Kant, particularmente quando confrontados com a doença. Nestes momentos, depositamos confiança nos médicos para nos apontarem a cura e, na maioria das situações, acatamos as sugestões de tratamento prescritas (exceto quando implicam sacrifícios significativos, como reduzir o consumo de açúcar e sal, ou aumentar a prática de exercício físico!) [2].

Efetivamente, inquéritos realizados junto da população portuguesa demonstram uma sólida confiança nas instituições e profissionais de saúde, como os de emergência e socorro [3]. Essa confiança nas autoridades de saúde e nos profissionais que nela trabalham, ficou particularmente evidente durante a pandemia [4].

Apesar disso, o clamor por uma comunicação mais clara e assertiva tem vindo a aumentar. Um número considerável de utentes deseja ter voz ativa na sala de tratamentos. Neste contexto surge o conceito de “Tomada de Decisão Compartilhada”, por vezes enquadrado nos cuidados de saúde centrados no utente, que visa transformar a relação médico-utente. Em vez de o médico prescrever um tratamento unilateralmente, médico e utente colaboram na definição do melhor curso de ação, incluindo etapas personalizadas diferentes das habituais, caso seja importante para o cidadão e não houver indicação clínica contrária. Na base da transformação da relação está a adaptação do sistema a utentes capacitados (que é uma concetualização mais exata da mudança do papel do utente, do que a do utente consumidor, ou utente especialista).

Três pressupostos são necessários para que esta transição se faça: 1. que a forma de navegação no sistema o permita, 2. que os utentes estejam capacitados e disponham de informação, e 3. que profissionais de saúde e utentes compreendam as vantagens e os riscos da decisão conjunta.

  1. O sistema de saúde deve permitir essa decisão compartilhada, algo mais próximo na saúde privada, mas ainda em desenvolvimento no Sistema Nacional de Saúde. A introdução do “Livre Acesso e Circulação” em 2016 permitiu aos utentes escolher, em conjunto com o seu médico de família, o hospital para consultas de especialidade, baseando-se no tempo de espera e na proximidade dos serviços. No entanto, a efetiva implementação da decisão compartilhada carece ainda de uma avaliação sólida.
  2. Os cidadãos precisam estar capacitados e bem informados. A literacia em saúde é fundamental, e em Portugal, em 2016, 61% da população apresentava níveis problemáticos ou inadequados [5]. Iniciativas como o Plano de Ação para a Literacia em Saúde 2019-2021 da DGS e a criação da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), estabelecida em 2022, procuram melhorar essa capacitação. Os livros interativos no portal do SNS apresentam informação importante na prevenção da doença. São necessários auxiliares de decisão do doente que expliquem as opções em caso de doença, como os disponibilizados pelo NICE. A disponibilidade de informação é outra faceta crítica. Informações sobre procedimentos e serviços, de forma comparativa e acessível, são essenciais. Atualmente, Portugal carece de fontes consolidadas e confiáveis sobre riscos médicos dos procedimentos e qualidade dos serviços. Embora o Portal de Transparência do SNS seja um avanço o formato não é o mais adequado para o cidadão comum compreender as tendências e capturar a informação necessária sobre o procedimento medico que pretende fazer. Plataformas como do Care Quality Commission no Reino Unido e a alemã “Weisse-liste” oferecem uma compreensão mais intuitiva das opções ao cidadão e/ou aos seus cuidadores.
  1. Vantagens e os riscos da decisão conjunta. Por fim, tanto os profissionais de saúde como os utentes devem compreender os benefícios e os riscos associados à co-participação nas escolhas de tratamentos. Esta transição pode estar associada a desafios legais, e pode levar ao aumento das iniquidades em saúde, como salientam alguns autores [6].

Apesar de não ser uma transição trivial, os profissionais de saúde que estão acostumados (e são muito bons) a orientar os utentes, poderão também orientá-los para as vantagens da decisão conjunta. A tarefas dos médicos do sec. XXI é ajudar os cidadãos a ajudarem-se a si próprios. Para que a transição para decisão compartilhada aconteça, é, portanto, necessário o compromisso de todo o sistema de saúde – política, instituições e profissionais de saúde – e dos cidadãos.

Joana Pestana

Doutoranda, Economista da Saúde e investigadora no Nova Health Economics and Management Center da Nova School of Business and Economics

 

  • [1] Kant, Immanuel. (1784). Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (Respondendo à pergunta: O que é o Iluminismo?)
  • [2] Böhnke, Andrea. (2022). Arzt-Patienten-Verhältnis Herr Doktor, Sie müssen mir zuhören. ZEIT WISSEN NR. 01/2023
  • [3] Tavares, A. O., Mendes, J. M., & Basto, E. (2011). Percepção dos riscos naturais e tecnológicos, confiança institucional e preparação para situações de emergência: O caso de Portugal continental. Revista Crítica de ciências sociais, (93), 167-193.
  • [4] Varghese, N. E., Sabat, I., Neumann-Böhme, S., Schreyögg, J., Stargardt, T., Torbica, A., … & Brouwer, W. (2021). Risk communication during COVID-19: A descriptive study on familiarity with, adherence to and trust in the WHO preventive measures. PloS one, 16(4), e0250872.
  • [5] Pedro, A. R., Amaral, O., & Escoval, A. (2016). Literacia em saúde, dos dados à ação: tradução, validação e aplicação do European Health Literacy Survey em Portugal. Revista portuguesa de saúde pública, 34(3), 259-275.
  • [6] Timmermans, S. (2020). The engaged patient: The relevance of patient–physician communication for twenty-first-century health. Journal of Health and Social Behavior, 61(3), 259-273.
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