
Fora dos grandes centro urbanos, 30% dos participantes de um ensaio clínico foram identificados nas farmácias. Esta é uma conclusão de um estudo da Direção de Soluções e Evidência em Saúde da Associação Nacional das Farmácias (ANF), que foi apresentado em maio numa reunião do Pharmaceutical Group of the European Union (PGEU).
Na altura, a ANF sublinhou que “ao serem pontos de acesso descentralizados no ecossistema de ensaios clínicos, as farmácias podem reforçar o suporte a estudos de caracterização epidemiológica da população e participar ativamente na monitorização e recolha de resultados em Saúde”.
Em entrevista ao NETFARMA, Ema Paulino, presidente da ANF, explica agora que a “integração das farmácias no circuito da investigação clínica torna o sistema nacional de saúde mais competitivo”.
– Os dados apresentados indicam que cerca de 30% dos participantes num ensaio clínico foram identificados nas farmácias. Como avalia este resultado?
– Diariamente as equipas das farmácias contactam cerca de 590 mil pessoas em todo o território nacional. Cada uma destas interações representa uma oportunidade de identificar pessoas que possam cumprir os critérios de inclusão e beneficiar de tratamentos inovadores. Tradicionalmente, o recrutamento de participantes é feito nos centros de ensaio clínico, geralmente localizados nas grandes unidades hospitalares. Esta centralização pode limitar o acesso de pessoas que, apesar de poderem beneficiar da participação, não são acompanhadas nestes centros e, por isso, desconhecem a existência destas oportunidades.
A colaboração das farmácias comunitárias com as outras unidades de cuidados de saúde envolvidas em ensaios clínicos permite descentralizar o processo de recrutamento, facilitando a identificação de potenciais candidatos. As farmácias assumem-se, assim, como pontos de triagem de proximidade altamente promissores. Os farmacêuticos, enquanto profissionais de saúde com sólida formação científica e conhecimento dos utentes que frequentam diariamente as farmácias, estão numa posição privilegiada para apoiar a identificação de candidatos, com base em critérios de elegibilidade previamente definidos.
Pela sua rede alargada, cobertura geográfica e proximidade à população, as farmácias têm a capacidade de ampliar significativamente os pontos de contacto com os cidadãos, potenciando a identificação de participantes e promovendo um acesso mais equitativo à inovação terapêutica. O sucesso desta iniciativa-piloto demonstra claramente esse potencial: em apenas cerca de um mês, as farmácias envolvidas conseguiram identificar um número expressivo de candidatos, muitos dos quais vieram a integrar efetivamente o ensaio clínico.
A colaboração com uma entidade de reconhecida experiência na condução de ensaios clínicos, como a MKA – Medical Knowledge Academy, representada pelo Professor Pedro Monteiro e do Professor Raúl Marques Pereira, foi fundamental para o êxito desta participação das farmácias.
– Que significado tem este dado para o reconhecimento da farmácia comunitária como parte ativa do ecossistema de investigação clínica em Portugal?
– Este dado representa um marco significativo, evidenciando que as farmácias comunitárias são, cada vez mais, agentes ativos no ecossistema da saúde e podem desempenhar um papel relevante não só na prestação de cuidados, mas também na investigação clínica e no acesso à inovação. O alargamento das suas competências e a sua participação em ensaios clínicos, para além da já reconhecida atividade de recolha de dados em contexto de vida real, base fundamental para a geração de evidência em vida real – traduzem um avanço importante na descentralização da investigação e na aproximação dos ensaios clínicos às pessoas. Adicionalmente, a integração das farmácias no circuito da investigação clínica torna o sistema nacional de saúde mais competitivo, aumentando a sua capacidade de atrair investimento e melhorando a atratividade de Portugal para a realização de ensaios clínicos e outros estudos. Estes representam não apenas oportunidades de desenvolvimento científico, mas também uma via privilegiada de acesso à inovação em saúde, com impacto direto nas comunidades que as farmácias servem todos os dias.
– De que forma é que as farmácias comunitárias contribuem, na prática, para o recrutamento e envolvimento de participantes?
– Na prática, as farmácias comunitárias contribuem de forma concreta e eficaz para o recrutamento e envolvimento de participantes em ensaios clínicos, tirando partido da sua proximidade à população e da relação de confiança estabelecida com os utentes. No exemplo descrito, e no âmbito da colaboração com a MKA, as farmácias desempenham um papel ativo na triagem inicial de utentes com base em critérios de elegibilidade previamente definidos. Após esta triagem, os potenciais participantes são informados sobre os ensaios em curso. Mediante o seu consentimento informado, os utentes identificados são encaminhados para as equipas clínicas de investigação responsáveis pelo ensaio, que procedem ao contacto e seguem o protocolo de recrutamento estabelecido. Esta abordagem beneficia diretamente da proximidade geográfica e relacional das farmácias com as comunidades. A relação de confiança que os farmacêuticos mantêm com os utentes facilita o envolvimento inicial, bem como o acompanhamento contínuo, o que pode contribuir para reduzir a taxa de desistência ao longo do estudo e garantir uma maior adesão aos procedimentos clínicos e de acompanhamento. Atualmente, temos uma iniciativa em curso que visa o desenvolvimento de um projeto tecnológico para otimizar o acesso, a identificação e a seleção de potenciais candidatos.
– Que tipo de formação ou apoio é necessário para que os farmacêuticos possam colaborar eficazmente nestes processos?
– É essencial garantir formação específica e contínua em boas práticas de investigação clínica, princípios éticos da investigação clínica, metodologias de investigação clínica, proteção de dados e confidencialidade, comunicação eficaz com o potencial participante, entre outros. Para além da formação, é importante disponibilizar materiais de apoio e estabelecer canais de comunicação claros com as equipas de investigação e equipa clínica. O apoio técnico e a coordenação centralizada são também fundamentais para assegurar a qualidade da informação prestada e recolhida junto dos utentes.
– Estão previstas parcerias com centros de investigação, universidades ou a indústria farmacêutica?
– Sim, a expansão prevista para 2025 contempla, de forma clara, o reforço das parcerias estratégicas com todos os intervenientes do setor da investigação clínica. A colaboração com centros de investigação, universidades e a indústria farmacêutica será essencial para assegurar a sustentabilidade, qualidade e abrangência dos projetos.
– Como imagina o papel da farmácia comunitária na investigação clínica nos próximos anos?
– Antevemos a farmácia comunitária como um verdadeiro hub de investigação clínica, assumindo um papel central na ligação entre a inovação clínica e as comunidades. Para além do seu contributo no recrutamento de participantes, poderá desempenhar um papel cada vez mais relevante na monitorização de participantes em proximidade, na recolha de dados clínicos em contexto real de utilização, na promoção da literacia em saúde e na integração de ferramentas digitais, como a telesaúde.
– Que condições ainda é necessário criar para consolidar esta integração?
– É necessário criar um conjunto de condições estruturantes que assegurem a qualidade, segurança e viabilidade desta integração. Entre as prioridades identificadas, destacam-se a clarificação do enquadramento técnico e regulamentar da participação das farmácias, o desenvolvimento de plataformas digitais seguras para a partilha de dados, a garantia de uma remuneração justa e proporcional ao envolvimento dos profissionais, e o investimento na formação contínua dos farmacêuticos. Com estas condições reunidas, será possível consolidar a farmácia comunitária como um verdadeiro pilar da investigação clínica em Portugal.