
Portugal tem investido na saúde como um adolescente numa discoteca: gasta-se muito, espera-se que aconteça magia, e no dia seguinte acorda-se com dor de cabeça e sem saber bem onde foi parar o dinheiro.
Os relatórios PaRIS e Health at a Glance 2024 da OCDE são como aquele amigo que aparece com fotografias da noite anterior — não gostamos do que vemos, mas está na hora de enfrentar a realidade.…
Muito Dinheiro, Pouco Retorno
A despesa em saúde em Portugal tem vindo a crescer de forma consistente. Investimento? Talvez. Mas onde está o retorno? Os resultados continuam estagnados, as desigualdades persistem e estamos longe de ser motivo de orgulho (a não ser que estejamos a escrever uma reclamação). Continuamos a aumentar os inputs, mas o output parece preso num engarrafamento burocrático. Portanto, sim, estamos a gastar. E muito. Mas enquanto injetamos euros no sistema, o retorno desse investimento continua misteriosamente ausente. Assistimos a um declínio acentuado na satisfação e acesso, sobretudo nos cuidados primários e na gestão das doenças crónicas. Segundo o PaRIS, os utentes portugueses reportam resulatdos significativamente piores em áreas como a coordenação de cuidados e a participação nas decisões clínicas. Portanto, a questão impõe-se: estamos a gerir um custo ou a investir na saúde?
Value-Based Healthcare: O Unicórnio Que alimentamos, Mas Nunca Vimos
É aqui que entra o conceito de Value-Based Health Care (VBHC) — a promessa de alinhar o investimento com o que realmente importa aos doentes: os resultados. O VBHC podia ser o GPS que nos tirava deste caos. Mas em Portugal, o VBHC tem sido tratado como uma criatura mítica: invocado em estratégias e conferências, mas raramente visto em ação no terreno, ou mesmo como um sinal de Wi-Fi numa cave — fraco, instável e, na maioria das vezes, apenas aspiracional.
Criámos “centros de qualidade”, “certificações, acreditações”, “centros de referência” … mas resultados clínicos que provem impacto? Nada. Tudo iniciativas que, no papel, são impecáveis. Mas na prática? Muito poucas apresentam resultados clínicos visíveis, transparentes e auditáveis. Apenas diplomas na parede e a sensação de que “estamos a fazer qualquer coisa”. É como distribuir estrelas Michelin sem provar uma única refeição.
E os Centros de Responsabilidade Integrados (CRIs)? Nasceram para dar autonomia e responsabilidade às equipas, mas a maioria ainda vive obcecada com volume e produtividade. Contam-se procedimentos, consultas e cirurgias. Mas o que interessa — se os doentes melhoram — não se mede. É como dar um prémio ao cozinheiro pelo número de refeições servidas, sem perguntar se alguém ficou envenenado…
Dados? Quais Dados?
Tentamos gerir o sistema de saúde com binóculos no nevoeiro. Os resultados clínicos são escassos, e os custos ainda mais. Não temos um sistema nacional de contabilidade analítica por condição clínica. Não sabemos quanto custa um enfarte, uma fratura ou um parto — do início ao fim. E muito menos se o cuidado prestado produziu o seu resultado para o doente. Já existem modelos bem implementados noutros países, que mostram como alinhar incentivos com resultados. Por cá, continuamos a confiar no Excel e na boa vontade.
É como gerir uma padaria sem saber quantas pães vendeu, quanto fermento gastou, ou se os clientes tiveram uma intoxicação alimentar. E, no entanto, continuamos a falar em “investimento”. Mas investimento em quê, exatamente?
Custo ou Investimento? Depende do Que Se Mede
Quando o dinheiro entra, mas os resultados não aparecem, o que temos não é estratégia — é um ritual caro. Se queremos falar a sério de VBHC, não basta atribuir títulos bonitos. É preciso um sistema que ligue qualidade a consequências. Neste momento, um hospital que faz cinco cirurgias raras por ano é tratado da mesma forma que outro que faz quinhentas. E não sabemos se os resultados são diferentes — porque não os medimos. Os doentes ficam entregues ao Google e à sorte.
Pior: não existe um modelo financeiro que diferencie ou premeie quem faz melhor. Se um centro evita doença, complicações, reinternamentos e devolve o doente à vida ativa mais depressa — não recebe nada por isso. O pagamento continua baseado em volume, não em valor. E os centros com baixo desempenho continuam a operar sem consequências ou escrutínio. A mediocridade institucionaliza-se. O pagamento para não ter carga de doença é uma miragem a atingir…
Vamos Falar a Sério (e com um Fio de Esperança)
Não estamos assim tão longe de resolver isto — só estamos a ir devagar demais e com demasiadas cerimónias. Temos a capacidade tecnológica, temos excelentes profissionais de saúde, e temos exemplos de real inovação e capacidade operacional de implementação.
E, no meio desta paisagem fragmentada e tentativas isoladas, há uma oportunidade que vale a pena destacar — as Unidades Locais de Saúde (ULS). Estas estruturas têm o potencial de alinhar cuidados primários, hospitalares, continuados e até sociais numa lógica verdadeiramente integrada. O que significa isto no contexto de VBHC? Significa que, pela primeira vez, temos uma entidade responsável pelo ciclo completo de cuidados de uma população, permitindo medir os resultados em saúde ao longo do tempo e em vários níveis da prestação de cuidados.
Este modelo aproxima-nos dos exemplos europeus mais maduros de integração. Ao termos uma estrutura que acompanha o doente desde a prevenção até à reabilitação, cria-se a base ideal para medir valor.
Além disso, este modelo pode ajudar a transformar o sistema de financiamento. Em vez de pagar por atos ou por episódios isolados, poderíamos financiar as ULS com base em valores compreensivos por condição clínica, ajustados ao risco, e com incentivos baseados nos resultados obtidos. É aqui que VBHC deixa de ser um conceito abstrato e começa a mexer realmente no sistema — nas decisões, nos recursos e na responsabilização.
Na verdade, atualmente, falta-nos um sistema permanente e nacional de medição de resultados e custos, com reports em tempo real por condição clínica, ajustados ao risco e ligados ao seu custo real e analítico que possa ser convertido num modelo de financiamento real e ajustado às necessidades da carga de doença do sistema de saúde português.
Transparência não pode ser um tabu — tem de ser a base da confiança e da transformação.
Vamos Parar de Fingir
Portugal pode liderar em VBHC — mas não em possibilidades… liderar na prática e ser um exemplo na Europa de forma global.
- Primeiro, precisamos de parar de fingir que estamos a investir quando estamos só a gastar.
- Se não sabemos os resultados nem os custos, não estamos a gerir um sistema de saúde — estamos a financiar uma ilusão.
Podemos continuar a brindar com “champanhe” que afinal é água da torneira… ou finalmente exigir que o que servimos esteja à altura do que estamos a pagar. Porque, neste momento, a esperança é a coisa mais cara do orçamento da saúde.
Filipe Costa
PhD Nova School of Business & Economics