“Um modelo regulatório mais moderno, proporcional e previsível” 907

A Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) monitoriza de forma contínua a disponibilidade de medicamentos em Portugal. Porém, “grande parte das medidas em discussão e implementação no plano europeu – como a criação de uma lista europeia de medicamentos críticos e a existência de regras de segurança de stock e armazenamento – já são uma realidade no plano nacional”, revela Rui Santos Ivo.

A propósito da sua intervenção no Rethinking Pharma, a reunião magna dos profissionais da Indústria Farmacêutica em Portugal, este ano com o mote ‘Unleash de Power’, que aconteceu a 05 de junho, no Centro de Congressos do Lagoas Park, o presidente do Infarmed e presidente do Conselho de Administração (management board) da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), falou com o NETFARMA.

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– Quais são os desafios e as oportunidades na área do medicamento, nomeadamente do ponto de vista da regulação?

– A área do medicamento vive hoje um momento de profunda transformação, impulsionada por avanços técnico-científicos e tecnológicos ao nível da indústria farmacêutica, biofarmacêutica e tecnológica. Esta evolução rápida da ciência e da tecnologia desafia aquilo a que podemos chamar de ‘modelos tradicionais’ de regulação, exigindo respostas mais ágeis, flexíveis e orientadas para o futuro.

A Diretiva 65/65/CEE – a primeira pedra da legislação farmacêutica europeia e de um quadro legal e regulamentar harmonizado a nível europeu – já visava dois importantes propósitos: a defesa da proteção da saúde pública e o desenvolvimento do setor farmacêutico como eixo promotor do progresso socioecónomico. No atual contexto europeu, estas preocupações são renovadas, pelo que é essencial que a regulação continue a assegurar elevados padrões de qualidade, segurança e eficácia – em tecnologias sucessivamente mais complexas – mas também deve ser um fator impulsionador de inovação e competitividade e de reforço da capacidade e posicionamento da União Europeia e dos seus Estados-membros.

É nesse sentido que a Comissão Europeia tem vindo a preparar esse caminho com a revisão da legislação farmacêutica, cuja tramitação passou agora para a Presidência Dinamarquesa do Conselho da União Europeia. Este processo legislativo representa uma oportunidade decisiva para otimização e simplificação do quadro legal e regulamentar, tornar o sistema mais previsível e integrado e promover uma regulação proporcional ao risco, assegurando tendencialmente um acesso mais célere dos cidadãos à inovação terapêutica, com a garantia da sustentabilidade dos sistemas de saúde.

 

–  Então o ecossistema do medicamento, do dispositivo médico e da saúde em geral atravessa uma fase de profunda transformação…

– Sim, marcada pela implementação de novas regras e procedimentos ao nível da investigação clínica, da regulação de dispositivos médicos, da avaliação de tecnologias de saúde, da governação e regulação do tratamento, partilha e utilização de dados em saúde e da regulação da inteligência artificial. Paralelamente, salientam-se iniciativas legislativas estratégicas da Comissão Europeia. O Critical Medicines Act, focado no reforço da disponibilidade de medicamentos essenciais e na reindustrialização e autonomia da UE na produção de medicamentos, a Estratégia Europeia para as Ciências da Vida, orientada para o estímulo a investigação e inovação nas ciências da vida – e cuja proposta foi apresentada no último mês de junho – e o aguardado Biotech Act, que terá como objetivo o reforço da liderança da União Europeia no domínio da biotecnologia.

Todas estas iniciativas apontam para um modelo regulatório mais moderno, proporcional e previsível. E exigem dos próprios reguladores a capacidade de abordagens inovadoras. Neste contexto de franca transformação, a regulação afirma-se como um instrumento de proteção da saúde pública e uma alavanca estratégica para valorizar a ciência, acelerar a transferência de conhecimento para o mercado e reforçar a posição da Europa num cenário globalmente competitivo. Todo este trabalho é essencial para transformar os avanços científicos em soluções terapêuticas acessíveis e sustentáveis, beneficiando os doentes, os sistemas de saúde e a economia europeia como um todo.

 

– O que é preciso para se conseguir um equilíbrio, nos sistemas de saúde, entre a inovação e os medicamentos críticos?

– Alcançar um equilíbrio entre a inovação e o acesso a medicamentos essenciais nos sistemas de saúde exige uma abordagem integrada, assente numa regulação eficaz, num planeamento sustentável e numa colaboração estreita entre os diversos agentes do setor. Em Portugal, o INFARMED tem sido promotor desse caminho, assegurando que a inovação é acessível, tem utilidade terapêutica comprovada e assegura a sustentabilidade financeira do sistema de saúde.

A conciliação entre o acesso à inovação terapêutica e a garantia da sustentabilidade financeira do sistema de saúde é um desafio permanente. A introdução de novos medicamentos no mercado, muitos deles associados a investimentos elevados, tem sido constante. Resultando num aumento da despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos, tanto em meio hospitalar como em ambulatório, bem como da despesa suportada pelos próprios utentes.

Em 2024, o mercado nacional de medicamentos atingiu os 6.719 milhões de euros, refletindo este crescimento, sendo os encargos do SNS de quase 4 mil milhões. Como sabemos, o investimento público em saúde tem vindo a aumentar, o que constitui uma oportunidade para reforçar os mecanismos de avaliação e financiamento, garantindo um acesso mais equitativo e atempado às tecnologias de saúde.

O INFARMED tem acompanhado esta evolução, tendo em 2024 emitido 101 decisões de financiamento e comparticipação – 91 positivas! – relativas a novos medicamentos e novas indicações terapêuticas, o que reflete o esforço contínuo para garantir o acesso dos cidadãos à inovação. Este esforço refletem uma evolução positiva no que respeita ao acesso a novos medicamentos. Portugal integra posição cimeira entre os países da União Europeia no que respeita à acessibilidade a novos medicamentos.

Por outro lado, o INFARMED monitoriza também de forma contínua a disponibilidade de medicamentos em Portugal, através de um trabalho colaborativo com todos os intervenientes do circuito do medicamento. É interessante observar que grande parte das medidas em discussão e implementação no plano europeu – como a criação de uma lista europeia de medicamentos críticos e a existência de regras de segurança de stock e armazenamento – já são uma realidade no plano nacional. Nesta área, temos procurado ter uma abordagem estratégica e pioneira. Cooperamos ativamente com os nossos congéneres europeus – importando boas práticas e partilhando o nosso conhecimento e experiência – porque sabemos que apenas uma abordagem coordenada permite soluções efetivas para a prevenção e mitigação de situações de escassez de medicamentos.

Este esforço, no entanto, não pode ser conduzido isoladamente pelo regulador. A garantia de um acesso equitativo, atempado e sustentável à inovação terapêutica exige uma responsabilidade partilhada entre a autoridade reguladora, a indústria farmacêutica, os profissionais de saúde, os decisores políticos e a sociedade civil. Só através do compromisso de todos será possível assegurar que o progresso científico se traduz em reais benefícios para os cidadãos, sem comprometer a sustentabilidade dos sistemas de saúde.

Em alinhamento com estas prioridades, também a recente reorganização do INFARMED, materializada na alteração dos seus estatutos, incorpora esta estratégia.

 

– Quais as mais-valias, para Portugal, de ter neste momento uma presença tão relevante na EMA?

A participação ativa de Portugal na EMA constitui uma mais-valia estratégica em múltiplas dimensões, não só porque fortalece o sistema de saúde nacional, como projeta o nosso país como um parceiro competente e capaz de construir soluções no espaço europeu e internacional da regulação do medicamento. Portugal, enquanto Estado-Membro de referência, tem vindo a consolidar uma posição de destaque na rede europeia de regulação do medicamento, através da atuação do INFARMED e da qualidade do seu contributo científico e técnico. O país lidera atualmente os rankings europeu na avaliação científica e regulamentar de medicamentos pediátricos e de medicamentos órfãos e no controlo laboratorial, o que atesta a sua capacidade regulatória e o reconhecimento internacional do seu trabalho.

Esta participação qualificada e especializada na EMA permite-nos não só antecipar decisões com impacto direto no sistema de saúde nacional, como também influenciar de forma decisiva a construção de uma regulação mais robusta, harmonizada e centrada na proteção da saúde pública.

Por outro lado, ter portugueses em posições de topo na EMA é um claro reconhecimento da competência técnica e científica institucional e nacional. Existem vários profissionais e peritos do INFARMED a assumir funções relevantes no domínio da regulação e avaliação do medicamento. O professor Bruno Sepodes a título de exemplo – eleito presidente do Comité dos Medicamentos de Uso Humano (CHMP) em setembro 2024 – desempenha um papel central na avaliação científica de medicamentos na União Europeia (UE), contribuindo para decisões que impactam diretamente o acesso dos cidadãos europeus a novos medicamentos e a tecnologias inovadoras e disruptivas. A nossa representação no exterior é grande motivo de prestígio para o INFARMED e, permito-me, para Portugal.

No meu caso, enquanto presidente do Conselho de Administração da EMA, tenho procurado reforçar a cooperação entre os Estados-Membros, promovendo uma visão estratégica integrada e o reforço da confiança pública na ciência e atividade regulamentar. A credibilidade das instituições é o seu maior ativo e, no tempo que vivemos, a sua preservação o nosso maior desafio.

Importa sublinhar que ter uma intervenção reconhecida a nível europeu — também na área da avaliação de tecnologias da saúde — significa, acima de tudo, podermos ser parte integrante e influente nos centros de decisão dos sistemas europeus, que assumem hoje um papel cada vez mais relevante e determinante nas nossas ações e resultados a nível nacional