Situações Clínicas Ligeiras: “Portugal não pode ficar para trás” 756

A tendência está a ser observada a nível mundial. Existem exemplos paradigmáticos de uma intervenção farmacêutica nestas situações em países como o Reino Unido, França, Espanha, Suíça e Canadá. As farmácias arrepiaram caminho e encontram-se capacitadas para dar resposta a este novo serviço e enquanto se aguarda pela publicação do despacho, a Ordem dos Farmacêuticos, Ordem dos Médicos, o Infarmed e a DGS definem critérios clínicos e elaboram protocolos.

Em 2024, uma proposta inscrita em Orçamento de Estado visava o lançamento de um programa piloto de serviços farmacêuticos para “situações de patologia aguda simples, de acordo com protocolos a estabelecer entre a Ordem dos Farmacêuticos e a Ordem dos Médicos”. Apesar da ausência desta medida na proposta de Orçamento do Estado para 2025, a Comissão de Saúde da Assembleia da República aprovou, em reunião realizada a 26 de fevereiro, um projeto de resolução para “criação de um projeto piloto de intervenções terapêuticas em situações clínicas ligeiras por farmacêuticos nas farmácias comunitárias”.

No dia 25 de fevereiro de 2025, a então Secretária de Estado da Saúde, Ana Povo, revelou que se encontrava em preparação a publicação de um novo despacho que envolvia as Ordens profissionais, o Infarmed e a Direção-Geral da Saúde na implementação de protocolos para a intervenção do farmacêutico em situações ligeiras.

“Neste momento, com um novo Governo empossado, mas com os mesmos responsáveis na área da Saúde, esperamos que seja dada continuidade a este trabalho, nomeadamente através da publicação do referido despacho”, assinalou o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos à Farmácia Distribuição.

Esta é uma tendência “observada a nível mundial”. Existem “exemplos paradigmáticos de uma intervenção farmacêutica nestas situações em países como o Reino Unido, França, Espanha, Suíça e Canadá”. Na perspetiva de Helder Mota Filipe “Portugal não pode ficar para trás”.

O novo paradigma “permitirá uma diminuição da pressão sobre os serviços de Saúde do SNS através da atuação do farmacêutico com base em protocolos clínicos bem definidos para patologias identificadas, em articulação com a Ordem dos Médicos, e que podem culminar na dispensa de um medicamento sujeito a receita médica”.

A intervenção dos farmacêuticos “representa um passo firme no sentido de um sistema mais ágil, acessível e centrado nas necessidades reais do cidadão, sem perder, antes pelo contrário, a qualidade e a segurança da intervenção”. Aliás, no caso do Reino Unido, Helder Mota Filipe sublinha que “num ano evitaram-se 38 milhões de consultas e idas às urgências, o que, extrapolando para Portugal, significaria evitar cinco milhões”.

Sobre as iniciativas da OF que visam contribuir para a implementação desta medida no nosso país, o Bastonário recorda que, em 2024, a Ordem dos Farmacêuticos reuniu com a Secretária de Estado da Saúde e entregou ao Ministério da Saúde o resultado de um exercício comparativo internacional sobre a intervenção farmacêutica em condições clínicas ligeiras na farmácia comunitária.

Além disso, nos dias 20 e 21 de janeiro de 2025, uma comitiva da Ordem dos Farmacêuticos esteve reunida em Londres com a Royal Pharmaceutical Society e com o chief pharmaceutical officer for England do National Health Service (NHS). “Os encontros tiveram como principal objetivo conhecer melhor o Pharmacy First, o programa implementado nas farmácias comunitárias inglesas em 2024 e que autoriza a dispensa de medicamentos sem necessidade de consulta e prescrição médica para sete situações clínicas ligeiras”. Para além disso, a Ordem dos Farmacêuticos tem estado sempre disponível “para colaborar com o Ministério da Saúde e com a Ordem dos Médicos na elaboração destes protocolos”.

Presidente da AFP defende brevidade na implementação

O tratamento de infeções ligeiras nas farmácias “é uma tendência crescente em muitos países, sendo a falta de profissionais de saúde e as dificuldades de acesso a consultas para tratamento de situações ligeiras desafios comuns”, reforça a presidente da Associação de Farmácias de Portugal (AFP).

“A intervenção do farmacêutico oferece uma resposta rápida, acessível e equitativa, ajudando a aliviar a pressão sobre o SNS e valorizando os recursos humanos que já existem nas farmácias”. Por este motivo, Isabel Cortez acredita que este projeto “é irreversível”. A sua convicção é reforçada “pela continuidade da ministra da Saúde no atual Governo, que já demonstrava um alinhamento com esta iniciativa”. Mas é ainda necessário que “as entidades envolvidas definam as situações clínicas ligeiras que serão abrangidas”.

O projeto “está numa fase de definição de critérios clínicos e elaboração de protocolos, pela Direção-Geral da Saúde, Infarmed, Ordem dos Farmacêuticos e Ordem dos Médicos”, esclarece a presidente da AFP. “O nosso objetivo é que toda a intervenção e dispensa de medicamentos seja feita com base em protocolos bem definidos, permitindo a dispensa protocolada. A sua implementação é o próximo passo fundamental para garantir uma intervenção farmacêutica estruturada, segura e eficaz”.

“A nossa expectativa é que este projeto seja implementado com brevidade”. Isabel Cortez lembra que “já prestamos aconselhamento em situações clínicas ligeiras nas farmácias, mas a nossa atuação está limitada pela impossibilidade de dispensar medicamentos sem uma comunicação direta com o médico. Com os novos protocolos, essa limitação será ultrapassada”.

Os farmacêuticos “estão qualificados para esta função”, para além de que “temos um forte compromisso com o desenvolvimento profissional contínuo”. Nesse sentido, “a AFP e a Ordem dos Farmacêuticos estão a preparar formação específica para que os farmacêuticos saibam como registar e comunicar adequadamente estas intervenções. Além disso, vemos como essencial o desenvolvimento de um sistema informático que permita os registos necessários e, idealmente, a interoperabilidade entre os sistemas das farmácias e do SNS, para uma comunicação fluida”.

Isabel Cortez defende que “este serviço não só irá valorizar a nossa profissão, como é, acima de tudo, uma resposta às necessidades dos cidadãos, preenchendo uma lacuna importante no acesso aos cuidados de saúde”.

Capacitação das equipas visa diminuir heterogeneidade da resposta

No domínio da formação, a ANF continua a trabalhar com as farmácias, internamente, «no sentido do refrescamento do conhecimento e capacitação das equipas para a prestação de um serviço de intervenção estruturada, com o objetivo de diminuir a heterogeneidade na resposta à população», refere a presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF). O chamado percurso formativo que a ANF disponibiliza às farmácias associadas “já impactou 5 279 farmacêuticos de 1 985 farmácias (dados até maio último)”.

Ema Paulino lembra que o progresso do programa piloto de serviços farmacêuticos para situações de patologia aguda simples “terá sofrido atrasos devido à queda do Governo e consequentes eleições”, mas “a recondução da equipa ministerial “faz-nos crer que haverá interesse em dar continuidade a este processo, dado que os pressupostos anteriores se mantêm”.

Sobre a implementação do projeto no terreno, a presidente da ANF considera que “à luz do que nos é mostrado pela realidade em que vivemos, faz todo o sentido, numa perspetiva de reavaliação estratégica do SNS, aproveitar a capacidade instalada nas farmácias, em termos de profissionais de saúde capacitados, horários alargados, distribuição capilar e confiança da população, para, mediante protocolos e assegurando que toda a informação das pessoas fica registada nas suas fichas clínicas, avançar neste sentido, como, aliás, vem acontecendo noutros países europeus, mas não só”.

As farmácias comunitárias “encontram-se numa posição privilegiada para apoiar e colaborar na resposta a estas situações, que consubstanciam problemas de saúde de caráter não grave, evidenciando sintomas facilmente reconhecíveis, de curta duração e que não estão relacionados com outros problemas de saúde, mas que, apesar disso, levam muitos utentes a procurar inapropriadamente outros níveis de cuidados”.

“E se é inegável que existe um vasto leque de situações clínicas ligeiras (SCL) a que a rede já dá resposta, face aos desenvolvimentos tecnológicos e à qualificação dos farmacêuticos comunitários, consideramos que essa lista deve ser revisitada e aumentada, no sentido de mais SCL serem desde logo resolvidas nas farmácias”, diz Ema Paulino. “Falamos de recurso a protocolos de intervenção farmacêutica previamente acordados, que preveem uma referenciação estruturada e bidirecional, retirando, assim, pressão às urgências e aos cuidados de saúde primários. Isto possibilita mais eficiência de recursos ao sistema e uma jornada de saúde mais simples e com melhores resultados às pessoas. Vemos, por exemplo, neste enquadramento, a intervenção no contexto da infeção aguda da orofaringe, através da realização de teste rápido de antigénio para a deteção de Streptococcus A, e também na triagem de cistite não complicada com testagem à urina”.

Jaime Melancia: “Faça-se!”

O Presidente da Plataforma Saúde em Diálogo e da PSO Portugal participou nas Jornadas de Farmácia Comunitária e deixou a seguinte mensagem:

Créditos: Jaime Melancia via Linkedin

“Falo com base na experiência de quem acompanha de perto a realidade das pessoas que vivem com doenças crónicas. Conheço os seus desafios, ouço as suas histórias e reconheço com clareza o impacto que o farmacêutico pode ter no seu percurso de saúde. Sobretudo em situações clínicas ligeiras.

Para quem vive com uma doença crónica, uma constipação, uma infeção urinária simples ou uma enxaqueca, não são apenas situações ligeiras. São interrupções, são riscos, e mal geridas podem comprometer o equilíbrio de todo o tratamento. É aqui que entram os farmacêuticos. Estão presentes em todo o território, oferecem resposta imediata, sem marcação, e garantem cuidados acessíveis, seguros e de proximidade.

Mas o farmacêutico é mais do que alguém que entrega medicamentos. É um profissional de escuta, de acompanhamento, de confiança. Ajuda-nos, por exemplo, a prevenir interações medicamentosas, acompanha os tratamentos, ajusta orientações quando necessário, e ajuda-nos a perceber melhor a nossa saúde. E fá-lo com algo que hoje vale ouro: tempo e atenção.

Promove a literacia em saúde, promove a autonomia do doente e melhora de forma concreta a adesão terapêutica. Quando compreendemos o que tomamos e porquê é mais fácil seguir o tratamento corretamente.

Mas há mais: a atuação do farmacêutico tem um impacto real no funcionamento de todo o sistema de Saúde. Ao tratar de forma estruturada situações clínicas ligeiras, como as constipações, pequenas infeções ou dores transitórias, o farmacêutico evita que esses casos sobrecarreguem os cuidados de saúde primários e, sobretudo, as urgências hospitalares, que estão sob enorme pressão.

Ao resolver de forma rápida e segura aquilo que é simples liberta tempo e recursos para que os médicos e os hospitais se possam concentrar nos casos que exigem maior complexidade clínica. Se esta intervenção for bem integrada, valorizada e acompanhada de mecanismos de registos e articulação, então o farmacêutico pode e deve ser visto como um pilar na sustentabilidade do SNS.

Investir na resposta próxima e eficaz do farmacêutico é investir na eficiência do sistema como um todo e, sobretudo, na saúde real das pessoas.

Claro que nem tudo corre bem. Existem barreiras sérias, a falta de articulação entre profissionais, a ausência de registo clínico partilhado e a falta de reconhecimento do papel do farmacêutico – não pelos utentes – ainda hoje visto como mero dispensador. Juntam-se limitações de espaço, tempo e formação e até a desconfiança por parte dos utentes que, por vezes hesitam em solicitar ajuda mesmo em casos simples. Isto também se combate com valorização, formação e comunicação. Há um enorme potencial por concretizar e começa logo pelo ensino. É essencial reforçar esta dimensão nas faculdades de Farmácia, envolver as associações de doentes na formação e criar diálogo entre profissionais e utentes.

O farmacêutico pode e deve ser o pilar da saúde de proximidade, centrado na pessoa. E para quem vive com doença crónica, poder contar com um profissional preparado, próximo e capacitado, é um recurso muito valioso e muitas vezes determinante para a qualidade de vida.

Está na mão de todos nós – profissionais, entidades, decisores e doentes – trabalhar para que este potencial se torne realidade. Faça-se!”

 

Artigo publicado originalmente na edição #390 da revista FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO.