Recursos Humanos: O grande desafio das farmácias 1139

A Farmácia Comunitária continua a ser o pilar para o início da profissão mas, de acordo com um estudo do Conselho de Jovens Farmacêuticos, é também a que tem registado maior êxodo para outras áreas farmacêuticas. Para contrariar esta tendência, responsáveis do setor defendem a modernização da gestão e das lideranças e a implementação de um modelo de carreira assente em categorias profissionais.

O aumento da necessidade de farmacêuticos nas farmácias comunitárias prende-se não só com questões associadas a “horários de funcionamento mais alargados, mas também com “a prestação de maior número de serviços que requerem a sua intervenção” e “o facto de o setor valorizar cada vez mais a sua presença”, afirma Luís Lourenço, ex-presidente da Secção Regional Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos (SRSRA-OF).

De acordo com os resultados de um estudo desenvolvido pelo Conselho de Jovens Farmacêuticos (CJF) da OF sobre os desafios e as dinâmicas da profissão, a Farmácia Comunitária “continua a ser o pilar central para o início e reingresso na profissão e na Ordem”. Mas também é “a área com maior êxodo para as restantes áreas farmacêuticas”.

Segundo a investigação do CJF, após aquisição de experiência em Farmácia Comunitária, muitos farmacêuticos procuram especializações em áreas como Indústria Farmacêutica e Farmácia Hospitalar, “o que indicia uma preferência por uma maior diferenciação da atividade profissional”. Aliás, a questão da orientação profissional, não só no início, mas também ao longo da carreira, é o tema central de uma série de webinares desenvolvidos pela SRSRA que irão ser lançados em breve.

Na perspetiva de Luís Lourenço, “hoje em dia existem várias oportunidades de desenvolvimento na área da Farmácia Comunitária em duas grandes dimensões: a área técnica e a área de gestão”.

A especialidade de Farmácia Comunitária e as competências atribuídas pela Ordem dos Farmacêuticos “permitem a valorização dos farmacêuticos, dando-lhes a capacidade de prestar serviços diferenciados”. Por outro lado, a renovação da terapêutica crónica, a dispensa de medicamentos hospitalares em proximidade e a gestão das afeções clínicas ligeiras, são medidas implementadas, ou em curso, que constituem “oportunidades de valorização ao longo da carreira”.

A gestão (e formação das equipas), a implementação (e marketing), de serviços, as atividades de literacia em saúde e responsabilidade social e a gestão financeira, são outras possibilidades enunciadas por Luís Lourenço.

 

Novas formas de gerir a atividade

“Atualmente a Farmácia Comunitária sente uma enorme dificuldade em recrutar farmacêuticos e técnicos de farmácia”, admite a farmacêutica Gabriela Plácido, membro da empresa 4CHOICE, Health Consultancy. “À saída da faculdade, a Farmácia Comunitária é, para muitos estudantes, a última opção profissional. Esta falta de interesse acarreta um enorme desafio, não apenas a nível do recrutamento, mas também, posteriormente, a nível da retenção de talento”.

A comunicação “pouco apelativa e aliciante do perfil do candidato desejado”, das “condições e benefícios que são oferecidas”, da “perspetiva de funções e carreira propostas”, dificultam muito o recrutamento direto, 2o que faz com que muitas farmácias recorram a empresas externas para realizarem o processo de pré-seleção”.

O desinteresse pela Farmácia Comunitária, “sobretudo junto dos jovens farmacêuticos”, decorre de fatores como “a perspetiva de que terão funções quase exclusivas de ‘balconista’, não terão um plano de carreira dentro da farmácia, o estatuto remuneratório não é aliciante, a sua progressão é lenta, o horário de trabalho é extenso e pouco flexível na forma como são geridos os tempos de permanência no local de trabalho”.

Hoje, independentemente da idade, “as pessoas dão muito valor ao apoio no desenvolvimento de competências, ao seu bem-estar mental, ao reconhecimento e, por isso, procuram oportunidades que lhes permitam crescer profissionalmente e conciliar melhor a vida profissional e pessoal”.

Depois da pandemia, a generalização do trabalho híbrido permitiu aos colaboradores desfrutarem de maior flexibilidade, mas a Farmácia “não está estruturada, neste momento, para poder oferecer períodos de trabalho presencial e remoto”. Gabriela Plácido defende, por isso, “a reformulação dos métodos de trabalho”. Os farmacêuticos e técnicos de farmácia “têm de fazer muito trabalho de backoffice“. Em farmácias já com alguma dimensão, “é possível acumular algumas tarefas num dia completo (por exemplo, cada semana ou quinzenalmente) e permitir que o profissional possa trabalhar de forma remota”.

Na opinião da farmacêutica, “as farmácias precisam de repensar a forma como gerem e apresentam a sua atividade. Atrair talento e retê-lo deve ser atualmente uma prioridade estratégica de qualquer companhia e as farmácias não são diferentes. Para isso é imprescindível atualizar a organização, compreender as expectativas dos potenciais candidatos, e investir no employer branding, que será a sua imagem enquanto empresa e empregador”.

 

ANF aposta na modernização da gestão e liderança

Ema Paulino refere que atualmente assiste-se, a nível global, “a uma crise de captação de recursos humanos para as áreas da Saúde, à qual o setor não é alheio”. Este é um tema “altamente sensível do ponto de vista do modelo de farmácia que defendemos para o nosso país”.

Concretamente, “ambicionamos uma crescente prestação de serviços de saúde pública, aliada a uma maior valorização da intervenção farmacêutica na saúde das pessoas através do seu papel clássico de aconselhamento terapêutico e dispensa de medicamentos, que permita às farmácias assumirem-se, formalmente, como um primeiro ponto de contacto com a rede de cuidados primários e referenciação das pessoas aos níveis seguintes de cuidados do sistema”. Para tal, “é absolutamente essencial criar condições para que as farmácias consigam captar os melhores profissionais, desenvolver o seu máximo potencial e fidelizá-los”, defende a presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF).

A estratégia da ANF traduziu-se, a partir de meados de 2023 e ao longo de todo o ano de 2024, numa série de iniciativas sob o mote ‘Ser farmacêutico comunitário é ficar na história das pessoas’, o qual pretende “evidenciar o poder transformador da intervenção dos profissionais das farmácias na vida das pessoas”.

O primeiro passo dessa estratégia, denominada ART-FC, foi “idealizar, discutir, desenvolver e apresentar às associadas e aos parceiros um modelo de carreira para farmacêuticos em Farmácia Comunitária que refletisse e se baseasse na visão que temos para o setor”. No modelo proposto pela ANF, “a valorização profissional de cada um é efetiva e conectada à sua prática profissional, sendo a progressão na carreira feita com o contributo do desempenho de um serviço farmacêutico de excelência”.

Ema Paulino explica que o modelo “assenta numa lógica de evolução horizontal, associada à aplicação prática dos conhecimentos técnico-científicos adquiridos e ao tempo de serviço. Prevê cinco categorias profissionais e uma progressão entre elas de, em média, cinco anos – mas depende do estágio de que estivermos a falar. Esta progressão pode, contudo, ser significativamente acelerada em função das competências adquiridas e da sua aplicação prática comprovada (registada) nas intervenções efetuadas, seja na prestação de consultas farmacêuticas e/ou serviços farmacêuticos”.

Este modelo de carreira já foi “adotado nas convenções coletivas de trabalho em que a ANF participa, e temos vindo a lançar diferentes instrumentos de apoio às farmácias na sua implementação. São disso exemplo o ‘Manual de Gestão de Carreiras’ e o ‘Manual de Gestão e Avaliação de Desempenho'”.

 

Raio X RH Farmácias: resultados em fase de análise

Além destas ferramentas de aplicabilidade prática, a estratégia ART-FC “tem também como propósito desenvolver e potenciar o talento existente nas farmácias, através da capacitação das pessoas em diferentes áreas”. Nesse sentido, Ema Paulino refere que “temos vindo a trabalhar com as lideranças das equipas, apoiando as pessoas que assumem o papel de dianteira nas farmácias, capacitando-as nas práticas de liderança e de gestão mais atuais, através de webinares e sessões de formação mais restritas, assim como do ‘Fórum Saúde Metal: Como construir equipas de alto desempenho’, iniciativa que irá fechar em março a sua quarta sessão descentralizada”.

A montante, “temos vindo a desenvolver um trabalho próximo com a Academia, através de várias workshops e fóruns de discussão com os responsáveis pelos cursos das diferentes universidades, no sentido de ver refletidas as novas necessidades da atividade desenvolvida em Farmácia Comunitária nos currículos académicos, e temos vindo a promover o setor, enquanto saída profissional, junto da comunidade estudantil, dentro do espírito do Memorando assinado em 2023, no 14.º Congresso Nacional das Farmácias”.

Relacionado ainda com o pilar da atratividade, “e uma vez que todos os anos as farmácias acolhem centenas de estagiários, publicámos o ‘Guia Prático de Orientação de Estágios Curriculares na Farmácia Comunitária’, dirigido aos responsáveis das farmácias pelo acolhimento a estes jovens”.

Estes são apenas alguns exemplos de como se expressa a estratégia ART-FC, refere a presidente da ANF, assinalando que “o assunto tem sido discutido também com os nossos parceiros a nível internacional, com os quais temos vindo a partilhar quer as preocupações, quer as ações que temos vindo a desenvolver”.

Nomeadamente, a ANF está neste momento a analisar os resultados do inquérito lançado no final do ano passado aos associados, intitulado ‘Raio X RH Farmácias’. O objetivo consiste em “conhecer mais aprofundadamente a realidade de cada uma das farmácias para definirmos ações adaptadas às necessidades identificadas”.

 

Tradição e inovação nas Farmácias Holon

Para conhecer a realidade no terreno, a FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO convidou grupos e redes de farmácias a partilharem a sua experiência. Nem todos os contactados deram resposta, mas os responsáveis das Farmácias Holon, das Farmácias Reis Barata e da Rede Alphega, falam sobre as suas estratégias e desafios.

A atração de talento, impulsionar a marca e dar a conhecer o seu trabalho, são algumas das prioridades no processo de recrutamento de novos colaboradores para as equipas das Farmácias Holon. “Tentamos que, desde o início, ao longo do processo de integração e de acolhimento, e no decorrer de toda a jornada do colaborador, tenha a melhor experiência”, assegura Ana Cardoso, técnica de Recursos Humanos.

É política interna “diversificar ao máximo as formas de conseguir atrair talento para a Farmácia Comunitária”. Nesse âmbito, “pensamos que é bastante importante estarmos presentes nas quatro maiores faculdades de farmácia do país, porque nos permite estar junto dos alunos, dar a conhecer a Farmácia Comunitária e, nomeadamente, as Farmácias Holon, para que, quando começarem a procurar estágios, tenham o nosso grupo como referência”. Ano após ano, é uma estratégia que «faz a diferença».

As redes sociais são outra ferramenta importante, não só de suporte às farmácias, como também pelo grande alcance em termos de notoriedade.

Contudo, Ana Cardoso refere que o “passa palavra” continua a ser importante. Aliás, nas Farmácias Holon, os colaboradores têm a possibilidade de “recomendarem um amigo para trabalhar nas farmácias do grupo”.

Mantendo a forma tradicional de recrutamento de novos talentos, nomeadamente através de anúncios na página institucional das Farmácias Holon, “tentamos diversificar com a nossa presença nas faculdades, nas redes sociais e a política de ‘recomendar um amigo’, uma estratégia muito utilizada em empresas de outros setores”.

 

Dinamismo das carreiras “é essencial para a retenção do talento”

“O recrutamento e a captação de talento são estratégicos para o nosso grupo, com uma abordagem de médio prazo”, refere Eunice Reis Barata, CEO das Farmácias Reis Barata. “Mantemos uma ligação próxima à Academia e aos estudantes, partilhando as oportunidades de desenvolvimento de carreira que existem nas nossas farmácias. Oferecemos trajetórias de evolução não só na área do atendimento e serviços farmacêuticos, mas também no marketing, na formação e na área comercial. Sabemos que quem procura um emprego quer conhecer as possibilidades de crescimento, e garantimos essa progressão”.

Nos últimos dois anos, “investimos fortemente em recursos humanos, criando equipas mais robustas para minimizar o impacto de saídas e evitar sobrecarga. Esta estrutura permite reforçar a formação contínua, um dos aspetos mais valorizados internamente, como se reflete nos resultados do nosso questionário anual de clima organizacional”.

As novas tecnologias, designadamente a Inteligência Artificial, “têm um papel ativo na modernização do nosso processo de recrutamento. Utilizamos IA na gestão dos currículos recebidos, sobretudo para funções com elevado volume de candidaturas. A tecnologia agiliza a triagem e identifica os perfis mais alinhados com os requisitos da função, tornando o processo mais eficiente”.

“Apesar da automação, acreditamos que a avaliação humana continua a ser essencial”. A CEO das Farmácias Reis Barata defende que “o recrutamento exige uma análise cuidadosa da adequação do candidato aos valores da empresa e, no nosso caso, priorizamos soft skills, determinantes para um atendimento de excelência nas nossas farmácias”.

Em 2024, as Farmácias Reis Barata celebraram 20 anos. Neste percurso, “as pessoas evoluíram dentro da organização, assumindo novas responsabilidades e liderando projetos. Incentivamos este crescimento, pois acreditamos que ninguém quer passar a vida a desempenhar as mesmas funções. O dinamismo das carreiras é essencial para a motivação e retenção de talento”.

 

Foco na motivação das equipas

José Augusto Silveira, diretor da Rede Alphega e professor convidado na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP), assinala que todos os anos observa “uma maior desvalorização e dificuldade em atrair talentos para Farmácia Comunitária”.

Na sua perspetiva, os grandes desafios estão relacionados com “a atração e retenção de profissionais qualificados devido a condições de trabalho exigentes, falta de reconhecimento, salários menos competitivos que outros setores e a sobrecarga de responsabilidades, a par de uma gestão de turnos exigente”.

Resolver esses problemas requer “investimento em formação, reconhecimento profissional, melhores condições de trabalho e maior valorização da função do farmacêutico comunitário – que poderá passar também por um papel mais ativo na própria valorização ao longo do seu percurso académico e nas faculdades”.

Enquanto Grupo, “a Rede Alphega investe em formação, desenvolvimento e atualização profissional – quer seja através de formações presenciais, quer seja através de formação assíncrona ou em modelo de e-learning – consciente que esta é uma proposta que dota as nossas farmácias de ferramentas que proporcionam um maior conhecimento e especialização, mas também motiva a equipa”.

O desenvolvimento contínuo e especializado dos profissionais, “com propostas formativas inovadoras, ‘fora da caixa’, e que apoiam e elevam o ato farmacêutico, ajudam as nossas farmácias a motivar as suas equipas, assim como a alcançar aquele que é o nosso propósito: um aconselhamento de excelência que promova a Farmácia como primeira linha do SNS”.

 

Artigo publicado originalmente na edição #386 da revista FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO.