Nos últimos anos, a discussão em torno do medicamento em Portugal tem oscilado entre dois polos: a pressão financeira permanente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a necessidade de garantir o acesso seguro, contínuo e equitativo ao tratamento. Em 2026, essa discussão volta a ganhar contornos políticos e mediáticos com a proposta aprovada por unanimidade no Parlamento para elevar a quota de mercado dos medicamentos genéricos, no ambulatório, para pelo menos 55%.
O anúncio parece simples: um valor, um objetivo, um compromisso.
Mas, como sempre no setor do medicamento, o diabo está nos detalhes. Ou, neste caso, na ausência deles.
Em termos europeus, Portugal situa-se num pelotão intermédio em quota de genéricos. Países como Eslováquia e República Checa, com quotas em torno dos 60–63%, bem como Alemanha, Reino Unido, alguns nórdicos e países de Leste, apresentam níveis de utilização de genéricos claramente superiores. Em contraste, economias como França, Itália, Bélgica ou Suíça continuam com quotas relativamente baixas, frequentemente abaixo dos 35% em volume.”
Num país onde os genéricos já representam aproximadamente 52,2% das unidades dispensadas em ambulatório, o salto para 55% pode parecer modesto. Mas a proposta não vive no vazio. Está inserida num contexto político, económico e regulatório mais complexo. Se o setor quiser realmente compreender o que este número significa, tem de olhar para além da percentagem e perguntar: o que está realmente em jogo?
Os números contam uma história (mas não a história toda) e a meta de 55% não é apenas técnica. É um sinal político.
Atingi-la não exige uma revolução, mas exige movimento, incentivos e, acima de tudo, clareza estratégica.
No entanto, apesar da unanimidade parlamentar, o Orçamento do Estado para 2026 não apresenta (pelo menos publicamente) um plano detalhado para atingir esse objetivo.
Temos a meta mas não temos o mapa.
Faltam respostas a perguntas essenciais:
- Haverá novos incentivos para prescrição por DCI?
- Existirão mecanismos para favorecer a entrada de novos players?
- Estão previstas campanhas de sensibilização para utentes e profissionais?
- Vão alterar-se margens, preços de referência ou critérios de comparticipação?
- Que papel terão as farmácias comunitárias na concretização da medida?
Enquanto estas respostas não chegam, o setor move-se no habitual modo português de adaptação: “vamos ver”.
Entre a narrativa da poupança e a realidade do mercado, há muito que os genéricos são apresentados como uma solução de sustentabilidade para o SNS. E, em parte, são.
Mas ao contrário do que por vezes é dito no debate público, o aumento da quota de genéricos:
- não reduz magicamente a despesa em saúde,
- não resolve problemas de acesso,
- não substitui políticas de inovação,
- e não compensa cortes estruturais noutras áreas.
Além disso, existe um fenómeno invisível mas real: a fadiga dos genéricos.
Prescritores e farmacêuticos, depois de anos de pressão e quotas, questionam:
- Até que ponto é que aumentar a quota resolve algum problema estrutural?
- E qual o impacto na qualidade, disponibilidade e aceitabilidade dos doentes?
- E sobretudo: qual o incentivo real para mudar o comportamento?
A meta de 55% não responde a estas questões. Mas deveria.
O verdadeiro desafio não é a quota mas sim o mecanismo, ou seja, para aumentar a quota de genéricos, existem três grandes alavancas:
- Prescrição por DCI com maior adesão dos clínicos
A prescrição por DCI continua a enfrentar resistência cultural e geracional. E não basta legislar; é preciso envolver os profissionais.
- Substituição na farmácia (responsável, mas não punitiva)
A farmácia comunitária tem sido um motor fundamental no crescimento dos genéricos mas qualquer política que dependa da farmácia deve vir acompanhada de incentivos adequados e não apenas obrigações ou margens comerciais.
- Educação e confiança dos utentes
Apesar dos anos de maturação do setor, uma fatia da população continua a ter dúvidas sobre eficácia e qualidade e se não houver investimento em comunicação clara, a margem adicional para crescimento será pequena.
Para a Indústria Farmacêutica, a proposta tem impactos diretos e indiretos. Para as empresas de genéricos, a notícia pode ser positiva, mas apenas se:
- houver previsibilidade regulatória,
- o mercado não se tornar demasiado pressionado em preço,
- existirem condições para entrada de novos produtos,
- e forem evitadas “sprints” na competição.
Para as empresas de marca (originadores), surgem perguntas inevitáveis:
- Haverá pressão adicional para substituir moléculas estabilizadas há décadas?
- O timing desta medida coincide com ciclos de patentes críticos?
- Esta meta é isolada ou acompanha outras políticas de contenção?
Sem clarificação, é difícil definir um plano estratégico sólido.
Outro player fundamental é a Farmácia Comunitária, uma espécie de agente invisível mas que tudo executa e sobre quem vai recair a parte prática.
Serão elas que:
- explicarão aos utentes a equivalência,
- irão gerir as substituições,
- manterão stock adequado,
Sendo que o risco acaba por ser (ou melhor, já o é há muitos anos, em ambulatório e hospitalar) a ‘comoditização’ do genérico.
Quanto mais se empurra o mercado exclusivamente para preço, mais se aproxima do ponto onde:
- a diferenciação desaparece,
- os incentivos à melhoria de qualidade diminuem,
- as margens tornam-se insustentáveis,
- e as ruturas podem aumentar.
É a velha questão: um mercado demasiado comprimido pode colapsar por baixo, não por cima.
Para evitar esse cenário, a política de genéricos deve incluir:
- incentivos equilibrados,
- espaço para concorrência saudável,
- e mecanismos que reconheçam o papel de quem dispensa, prescreve e garante continuidade. Já agora, garantia de qualidade e fiabilidade de supply chain.
55% é apenas o número de uma estratégia que ainda falta escrever, ou seja, a meta está definida. O Parlamento aplaudiu. Politicamente, o sinal está dado.
Mas metas não mudam o mercado. São os instrumentos que o fazem.
O OE 2026 precisa agora de apresentar:
- os incentivos,
- as condições,
- as proteções,
- e os mecanismos de implementação.
Até lá, o setor faz o que sempre fez: adapta-se, analisa, espera e prepara-se.
A meta dos 55% pode ser uma oportunidade, mas só se for acompanhada das políticas certas. Caso contrário, será apenas mais um número bonito que enfeita uma página do Orçamento, sem impacto real no terreno.
E, como todos sabemos, o setor do medicamento já viu muitos números assim.
João Carlos Serra Commercial Operations Director & Senior Healthcare Consultant HCO, Industry Investors and Pharma




