OTC´s, Dispositivos e Suplementos: a batalha no balcão da Farmácia 818

Durante décadas, o balcão da farmácia foi (calma, ainda é!) o bastião da confiança. O território mais ou menos neutro entre a ciência e o cidadão, onde o utente procurava certezas em vez de “likes” e o farmacêutico respondia com uma mistura rara de conhecimento, empatia e serenidade.

Mas o mundo mudou e o balcão mudou com ele. O que antes era um espaço de aconselhamento técnico tornou-se num microcosmos do mundo moderno: competitivo e em mutação. Entre o antigripal genérico e o suplemento de “magnésio marinho bioativo premium GTI”, há hoje um oceano de escolhas, embalagens, slogans e argumentos de venda. E, por vezes, muito pouca evidência científica.

Há vinte anos, o desafio do farmacêutico comunitário era simples: dominar a farmacologia, acompanhar as novas substâncias ativas, entender as guidelines terapêuticas e sentir saudades das festas no Waikiki. Hoje, esse desafio inclui saber o que é o hidrolisado de colagénio tipo II, distinguir entre um probiótico de “quarta geração” e outro “microencapsulado”, e responder a perguntas existenciais do tipo:

“Este suplemento ajuda mesmo na fadiga ou terei que deixar de fazer uma meia maratona todos os dias?” Já agora, para os que se levantam às 5 da manhã para ir correr, por favor tragam-me pão.

A verdade é que os “novos” protagonistas chegaram para ficar. Crescem em volume, margem e visibilidade. São a resposta de mercado a um consumidor que quer cuidar de si, mas que já não quer ouvir falar em doença. A saúde vende, a prevenção encanta, e o bem-estar, esse, tornou-se uma indústria com banda sonora própria.

O resultado é uma farmácia em mutação. O balcão é agora uma montra de promessas em forma de cápsula, creme, spray ou comprimido mastigável. E cada uma delas traz consigo uma narrativa cuidadosamente construída: “baseado na ciência”, “sem aditivos”, “inspirado pela natureza”, “com estudos clínicos próprios”, “sem gluten”, etc, etc.

O farmacêutico moderno vive, assim, um dilema de natureza quase filosófica:
Como manter a essência científica num ambiente onde o volume de vendas e o apelo visual pesam tanto quanto a evidência?

De um lado, a ética profissional, a responsabilidade técnica, o código deontológico.
Do outro, a realidade empresarial, os objetivos mensais, as margens e a pressão para dinamizar categorias de valor acrescentado.

E no meio, o farmacêutico, a tentar recomendar o que é melhor para o utente sem trair o equilíbrio económico da farmácia. É uma ginástica de bastidores que merecia uma medalha olímpica!

A ironia está em que esta transformação não resulta de uma decisão isolada, mas de uma teia de influências: a evolução do mercado, a pressão da indústria, as novas expectativas do consumidor e, claro, a necessidade de sobrevivência (palavra talvez exagerada) num contexto em que as margens sobre medicamentos comparticipados se tornaram quase homeopáticas, por comparação ao que víamos há umas décadas. Dizia-se que o melhor negócio que se podia ter era uma Farmácia bem gerida e o segundo melhor, uma Farmácia mal gerida. Era virtualmente impossível levar aquilo à falência, em tempos nos quais o BES (e outros) ainda existia e tinha uma linha de crédito especialmente dedicada para o negócio.

Num certo sentido, os suplementos, dermocosmética e dispositivos vieram salvar a farmácia. No entanto, também a obrigaram a repensar o seu papel: de guardiã do medicamento a gestora de uma categoria onde o discurso científico e o comercial dançam lado a lado, ainda que nem sempre em ritmo sincronizado.

O consumidor do século XXI já não chega à farmácia em busca de um conselho. Chega em busca de confirmação.
Lê rótulos, segue páginas de saúde no Instagram, vê vídeos de “especialistas” com boa iluminação e frases curtas.

O farmacêutico, que estudou anos de farmacologia, toxicologia e farmacocinética, é agora desafiado por um algoritmo. O utente chega com a marca na ponta da língua e o preço comparado no telemóvel. O papel do profissional já não é apenas recomendar: é reinterpretar a informação e, muitas vezes, resgatar o senso crítico perdido no feed das redes sociais.

Isto não significa que o farmacêutico tenha perdido relevância. Pelo contrário: nunca foi tão necessário.
Num mundo saturado de informação fragmentada, o farmacêutico é a última fronteira entre o “influencer da imunidade” e a evidência científica.
Mas essa fronteira é cada vez mais estreita e o terreno cada vez mais escorregadio. Há uma diferença subtil entre comunicar valor e fabricar perceção. E é precisamente aí que o farmacêutico tem um papel insubstituível: traduzir a linguagem do marketing na gramática da saúde.

A ironia, claro, é que quanto mais complexa se torna a comunicação das marcas, mais simples precisa de ser o discurso da farmácia.
O utente quer entender, não decifrar. E o farmacêutico é, no fundo, o tradutor simultâneo de um mundo que fala em “claims”, “clinicals” e “benefícios percebidos”, mas onde o que realmente conta é se o produto faz o que promete mas sem prometer o impossível.

É importante reconhecer que a farmácia comunitária é, também, uma empresa. E como qualquer empresa, precisa de ser sustentável.
Há, no entanto, uma diferença fundamental entre sustentabilidade económica e rendição comercial. O equilíbrio está em compreender que a credibilidade é o verdadeiro capital da farmácia. Sem ela, nenhum plano promocional compensa.

A credibilidade não se constrói com campanhas. Constrói-se com coerência, consistência e transparência. É o que faz o utente voltar… mesmo quando o preço não é o mais baixo.
No fim, o que o consumidor quer não é apenas um produto. É sentir que alguém o ouviu, o orientou e o protegeu da avalanche de promessas embaladas que o mercado despeja diariamente.

Talvez por isso, o futuro da farmácia dependa menos de quantos suplementos tem nas prateleiras e mais de quantos farmacêuticos têm a coragem de dizer:

“Este produto é bom, mas para si talvez não faça sentido.”

Essa é a diferença entre vender e cuidar. E essa diferença é o que mantém e manterá a profissão útil e viva.

O desafio que se desenha é muito interessante: a farmácia do futuro não precisa de ser um supermercado da saúde. Pode (e deve) ser um espaço de ciência e cuidado de saúde, onde o conhecimento é aplicado com bom senso e onde a inovação é filtrada pela ética e pela evidência.

Isto implica formação contínua, espírito crítico e capacidade de comunicação.
Implica saber explicar por que razão o “detox” não é panaceia, por que o “natural” não é sinónimo de seguro, e por que o suplemento que “funcionou” para o vizinho pode não ter qualquer lógica fisiológica para o utente seguinte.

Implica, acima de tudo, reconquistar o tempo e o espaço para o aconselhamento, porque a farmácia é o único ponto do SNS onde alguém pode entrar sem marcar consulta e sair com conhecimento e não apenas com um produto.
Esse é o verdadeiro valor da farmácia comunitária. E é também a sua vantagem competitiva mais duradoura.

Numa era em que tudo se mede, há algo que não cabe em dashboards: a confiança.
E é precisamente ela que distingue uma farmácia de uma loja comum.

No fim, quando o ruído do marketing se dissipa, o que o utente procura continua a ser o mesmo: alguém que saiba, que explique e que se importe.

E isso, felizmente, ainda não vem em cápsulas.

João Carlos Serra                                                                                                                                                         Commercial Operations Director & Senior Healthcare Consultant HCO, Industry Investors and Pharma