O Farmacêutico na Distribuição: Um guardião silencioso da saúde pública 1167

Quando falamos da cadeia de valor do medicamento, é frequente o foco recair sobre a investigação, o fabrico ou a dispensa em farmácia. Contudo, entre esses marcos fundamentais existe uma etapa crítica e, muitas vezes, menos visível: a distribuição farmacêutica. É neste elo que encontramos um dos pilares mais robustos da nossa infraestrutura de saúde: uma vasta rede de profissionais e processos altamente especializados, entre os quais se destaca o farmacêutico, cuja intervenção assegura que esta complexa operação decorre com rigor técnico, segurança e em estrito cumprimento das normas que regem o setor.

O papel do farmacêutico na distribuição ultrapassa largamente o cumprimento de normas ou a supervisão técnica das operações. Ele representa a consciência clínica, o rigor científico e o compromisso ético com a segurança do utente, dentro de uma atividade altamente regulamentada e sensível. Num setor que movimenta milhões de embalagens por ano e percorre milhares de quilómetros diariamente para garantir que os medicamentos chegam atempadamente a todos os pontos do território nacional, o farmacêutico é o garante de que cada etapa é cumprida com segurança, numa atividade onde a qualidade, rastreabilidade e integridade dos produtos são inegociáveis.

 

Um papel legalmente consagrado, operacionalmente essencial

Legalmente obrigatória e eticamente imprescindível, a presença de um Diretor Técnico (DT) – cargo reservado a um farmacêutico com formação específica em Boas Práticas de Distribuição (BPD), competências técnico-científicas e inscrição na Ordem dos Farmacêuticos – está longe de ser simbólica. O DT é responsável por assegurar o cumprimento das BPD e da legislação farmacêutica aplicável, manter um sistema de gestão da qualidade eficaz, controlar a cadeia de distribuição, representar a entidade junto das autoridades de saúde e zelar pela integridade e qualidade dos medicamentos ao longo de todo o circuito logístico.

No contexto do armazenamento, por exemplo, cabe-lhe garantir que os medicamentos não sejam expostos a condições ambientais adversas, salvaguardando aspetos como temperatura, humidade, luz e contaminação cruzada. O DT deve também assegurar a rotação correta de stock segundo o princípio FEFO (First Expire, First Out), a segregação de produtos em risco e a retirada atempada de medicamentos próximos do fim do prazo de validade. Este nível de vigilância contínua é fundamental para prevenir falhas e manter a integridade dos produtos.

Enquanto responsável técnico, o farmacêutico assegura também o correto funcionamento de áreas operacionais críticas: qualificação de fornecedores e clientes, receção e verificação de medicamentos, preparação e transporte de encomendas e, de forma particularmente exigente, a logística inversa, um dos maiores desafios para o setor.

A triagem, validação e eventual reintegração de medicamentos devolvidos exige conhecimento técnico, capacidade de análise e responsabilidade legal. Na gestão de produtos devolvidos, cabe ao farmacêutico que assume funções como Diretor Técnico implementar procedimentos que garantam a conformidade legal e contratual de eventuais reintegrações em stock. É ele que, após avaliação rigorosa, toma a decisão sobre a reintegração ou destruição dos medicamentos devolvidos, considerando fatores como validade, integridade, origem e rotulagem. A sua decisão é final e, muitas vezes, tomada em contextos exigentes, com impacto direto na segurança do doente e na eficiência do sistema. Esta responsabilidade individualizada, muitas vezes silenciosa, é uma expressão do compromisso ético que norteia a profissão.

 

Farmacêutico: peça-chave na inovação e proximidade

Neste momento de transformação do setor, o farmacêutico assume também um papel essencial na consolidação de novos modelos de acesso ao medicamento. A implementação do regime de dispensa em proximidade – que permite que medicamentos tradicionalmente dispensados em meio hospitalar sejam entregues nas farmácias comunitárias – é outro exemplo claro da centralidade do farmacêutico na cadeia de distribuição. Desde a rastreabilidade total do processo até ao controlo de qualidade e farmacovigilância, a sua intervenção é determinante para garantir que os medicamentos chegam ao doente com os mesmos padrões de segurança e eficácia que num ambiente hospitalar.

Esta evolução, que representa um ganho claro para o cidadão, para os profissionais e para o Sistema Nacional de Saúde no seu todo, requer um esforço logístico coordenado e só é possível graças a processos rigorosos de rastreabilidade e supervisão contínua da qualidade. O farmacêutico, enquanto profissional com competências técnicas e uma visão integrada do circuito do medicamento, estará na linha da frente para garantir que este novo modelo assenta em critérios de segurança, equidade e eficácia.

 

Um ativo estratégico para o futuro da saúde

Num contexto de desafios crescentes – desde a escassez de medicamentos à necessidade de maior sustentabilidade e digitalização – o farmacêutico afirma-se como um parceiro estratégico, desempenhando um papel crucial enquanto agente de estabilidade e inovação. A sua formação científica, aliada ao conhecimento técnico-operacional, permite-lhe ser um interlocutor qualificado junto das autoridades, um gestor de risco competente e um facilitador de soluções inovadoras ao serviço da saúde pública.

Na ADIFA, reconhecemos e valorizamos profundamente o contributo dos farmacêuticos na distribuição farmacêutica. Defendemos, há muito, a necessidade de consagrar na legislação portuguesa a especificidade da distribuição farmacêutica de serviço completo, com direitos e deveres próprios, que reconheça também o papel insubstituível dos profissionais que lhe dão corpo – entre os quais se destaca, com toda a legitimidade, o farmacêutico. Este reconhecimento já começou a materializar-se: com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 22/2025, de 19 de março, o setor da distribuição farmacêutica foi formalmente identificado como um serviço essencial nacional, obrigando os distribuidores à elaboração de planos de segurança e de resiliência, e assumindo um papel incontornável na resposta a emergências de saúde pública, crises energéticas ou climáticas.

Num setor onde se exigem respostas céleres, decisões informadas e cumprimento rigoroso das normas, o farmacêutico é, muitas vezes, o elo de confiança que une a técnica à segurança, e a logística ao cuidado. Um guardião silencioso, mas essencial, para garantir que a saúde pública não é comprometida nos bastidores do sistema.

Nuno Flora

Presidente da Associação de Distribuidores Farmacêuticos (ADIFA)