
Sem que nos apercebêssemos, a Inteligência Artificial (IA) invadiu todos os setores da sociedade e assumiu-se como um facilitador do qual já não pretendemos abdicar. Em saúde, promessas de diagnóstico imediato infalível, tratamentos decididos em minutos e promessas de conhecimento incalculável atraíram até os mais céticos.
Não é difícil de perceber: a área da Ciência de Computadores (4), na sua vertente de Machine Learning (ML), tem sofrido avanços surpreendentes, desenvolvendo uma IA que une disciplinas, desde a análise de dados à linguística e neurociências (5). Os modelos de Processamento de Linguagem Natural (NLP – Natural Language Processing) ainda que com algumas limitações, estão a transformar o setor saúde, permitindo melhorar a eficiência dos serviços médicos, a gestão hospitalar e a experiência dos pacientes. Tais inovações são particularmente relevantes para este setor, dado o seu contributo também para a otimização de gestão de processos, produtividade e resultados médicos (5,6).
Aplicações da IA em medicina
A aplicação da IA na medicina é vasta, dos quais sã exemplos o processamento de linguagem natural, o suporte ao desenvolvimento de novos fármacos e terapias, o reconhecimento de voz e os sistemas de deteção de doenças (7).
No campo do diagnóstico, a Imagiologia destaca-se como uma área onde a IA tem demonstrado particular utilidade, nomeadamente a nível da análise de exames de imagem para o diagnóstico de neoplasias (8,9), pneumonias (10) e de patologias autoimunes, como a esclerose múltipla (11).
A análise de exames laboratoriais é, igualmente, uma área onde a IA começa a desempenhar um papel crucial. Com efeito, estudos demonstram que, em casos particulares como o diagnóstico de carcinomas da pele, os sistemas de IA têm tido resultados altamente diferenciados (12).
Ao integrar dados laboratoriais, histórico médico e fatores de risco individuais, estes sistemas proporcionam diagnósticos mais rápidos e (por vezes) mais precisos.
Adicionalmente, a integração de sistemas de suporte à decisão clínica também desempenha um papel importante, auxiliando na recomendação de decisões. Estes sistemas alertam os médicos para dados relevantes que possam ter sido negligenciados, como diagnósticos ou problemas de saúde, e notificam sobre eventuais erros, como a prescrição de medicamentos contraindicados.
Assim, o uso de IA tem sido cada vez mais utilizado na saúde, especialmente para dar informação de suporte ao diagnóstico diferencial e a permitir a obtenção de mais informação para um plano terapêutico mais adequado ao paciente (6).
Vantagens e Impactos da IA na Medicina
Conforme mencionado, os sistemas de IA em saúde têm evidenciado inúmeras vantagens associadas a um elevado desempenho (4).
Alguns modelos permitem alcançar resultados surpreendentes e são, por vezes, capazes de identificar padrões e anomalias impercetíveis à observação humana, permitindo, desta forma, obter diagnósticos personalizados e reduzir as taxas de erro de diagnóstico. A capacidade destes sistemas em analisar grandes volumes de dados clínicos permite-lhes oferecer diagnósticos mais precisos, tornando-os valiosos aliados para os profissionais de saúde. Muitos destes sistemas possuem alertas integrados, o que ajuda a reduzir erros humanos associados ao diagnóstico e à administração terapêutica. (6)
Além destes modelos avançados conseguirem garantir melhores resultados para doenças comuns, há, ainda, a promessa de serem revolucionários no campo das doenças raras. (3) Destaca-se a Medicina de Precisão, na qual a promessa de tratamentos específicos a cada doente é uma das mais alimentadas pela IA moderna. Dados médicos de várias fontes são agregados e usados pela IA para sugerir diagnósticos rápidos e estratégias terapêuticas personalizadas. (13) Esta prevenção é especialmente pertinente, sendo a deteção do potencial diagnóstico feita por análises preditivas através da identificação de possíveis fatores de risco.
Esta utilização de IA vai para além dos diagnósticos; estende-se até terapêutica. Ao permitir o ajuste da estratégia ao diagnóstico e ao indivíduo, a análise intensiva de dados clínicos permite aumentar a eficiência e os resultados dos tratamentos, bem como minimizar os efeitos adversos associados a tratamentos específicos (13, 14) – tal aspeto reveste-se de particular relevância em populações minoritárias menos estudadas, tais como etnias não caucasianas, mulheres, crianças e idosos.
Desafios da IA na Medicina
Apesar de todos estes avanços, a utilização da IA na medicina enfrenta desafios significativos.
A privacidade e a segurança dos dados clínicos são preocupações centrais, que exigem o cumprimento de regulamentações éticas. Acresce ainda a (in)capacidade dos utilizadores em utilizarem estas ferramentas de forma a extraírem a informação mais acertada a cada decisão clinica.
Um dos desafios que tem surgido prende-se com risco de viés dos modelos, que pode levar a incorretos diagnósticos e tratamentos (16,18), colocando, assim, em causa um dos pilares desejados com a IA na Medicina: a Medicina de Precisão (19, 20). De facto, as minorias não estão corretamente representadas nos dados usados no treino dos algoritmos, tornando-se alvo de diagnósticos imprecisos e acarretando um maior risco de morbilidades e mortalidades. (19, 20, 21)
Paralelamente, a falta de interpretabilidade e transparência dos modelos mais avançados é outra barreira crítica. Muitos dos melhores modelos são considerados black-boxes, uma vez que o processo por detrás das suas predições é demasiado complexo para a interpretação e compreensão humanas. (4, 18)
Esta falta de transparência no processo de decisão é uma preocupação ética crítica, já que os sistemas utilizados em âmbito clínico necessitam de providenciar uma explicação clara das suas sugestões, no sentido de permitir aos profissionais de saúde entender a recomendação, confiar (ou não) na mesma, e atuar sobre ela. A transparência é um dos princípios fundamentais da IA Responsável, estando diretamente relacionada com a noção de responsabilidade do utilizador – se se atuar na sugestão do modelo e ocorrer dano, quem é o culpado, o humano ou a IA? A justiça, a inclusão e a segurança são outros destes princípios. (22).
Conclusão
Não nos podemos subjugar à dicotomia máxima informação vs. expertise clínica. O objetivo da IA em saúde é de amplificar e potenciar conhecimento, não de análise crítica de resultados, julgamentos sumários no diagnóstico e imperativos modelos de tratamento à luz apenas de uma quantidade infinita de informação integrada.
A decisão pode ser mais informada, mas não é obrigatoriamente a mais acertada.
É evidente a transformação da prática médica pela IA, ao permitir diagnósticos mais rápidos e precisos, ao melhorar a eficiência dos sistemas de saúde e ao proporcionar melhores resultados para os doentes.
No entanto, os diversos desafios éticos que da sua aplicação emergem, como a privacidade dos dados, a falta de representatividade e a transparência dos modelos, ainda limitam uma adoção ampla destas tecnologias.
Torna-se, assim, crucial a implementação de soluções, as quais poderão passar pelo aumento da diversidade dos dados e a aplicação de técnicas de explicabilidade e interpretabilidade por IA Explicável (XAI). Tais estratégias permitem aumentar a confiança nas IA atualmente disponíveis, promovendo uma adoção correta e ampla destas tecnologias na saúde, e transformando a medicina, tanto para os profissionais, como para os doentes.
Sempre com o pressuposto que mais informação clínica não é mais expertise. Essa sim, cabe aos profissionais liderar.
Filipa Machado Vaz
Manager in Business Consulting in Healthcare
Professora convidada na Nova School of Business and Economics
Membro do Health Economics & Management Knowledge Center da Nova SBE
Teresa Soares
Estudante do Curso de Especialização em Administração Hospitalar da ENSP NOVA
Presidente da Associação de Estudantes da ENSP NOVA (AEENSP-NOVA)
1º Ciclo de Estudos do Mestrado Integrado em Medicina pela NMS|FCM
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