Num ecossistema onde as decisões sobre acesso ao medicamento e tecnologias de saúde são cada vez mais complexas, o Incluir, um programa da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (INFARMED) lançado em 2017, vem consolidar um percurso de diálogo com as Associações de Pessoas com Doença (APD) e abrir um espaço formal à perspetiva de quem vive diariamente com a doença.
O NETFARMA falou com Pedro Faleiro, Gestor do Incluir, para compreender melhor o programa.
– Como surgiu o programa Incluir e quais foram os principais motivos que levaram à sua criação?
– O Incluir nasce da necessidade de consolidar um percurso de vários anos em que o INFARMED vinha progressivamente a criar mecanismos de diálogo com as Associações de Pessoas com Doença (APD). Antes de 2017, já existiam interações estruturadas — desde a representação de associações no Conselho Consultivo (2007), até ao trabalho técnico realizado com as APD no contexto da criação do Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde (SiNATS) (entre 2015 e 2016). Estes momentos demonstraram a real possibilidade de integrar a perspetiva dos doentes de forma útil e que esta poderia enriquecer o processo regulatório com elementos que a evidência científica formal nem sempre capta. Assim, o passo natural foi criar um programa com identidade própria, capaz de dar continuidade, estabilidade e profundidade a este trabalho.
A criação do Incluir respondeu também à perceção crescente de que as pessoas com doença detêm conhecimento e experiências únicas em resultado da sua convivência diária não apenas com a própria doença, mas, também com as opções terapêuticas disponíveis. O Incluir pretende corrigir essa assimetria de modo a permitir que a dimensão humana, social e prática das doenças tenha um espaço formal nos processos de decisão. Por outro lado, o Incluir emerge também como consequência da tendência europeia e internacional de reforço da participação dos cidadãos na regulação do medicamento.
Finalmente, o programa surge para garantir também que essa participação não dependa apenas de iniciativas pontuais e casuísticas, mas que se traduza num compromisso organizacional explícito e formal.
– Que objetivos estratégicos o Infarmed pretende alcançar com esta iniciativa?
– O Incluir pretende reforçar a qualidade das decisões regulatórias, integrando contributos que ampliam a compreensão sobre os impactos reais das doenças e dos medicamentos disponíveis no arsenal terapêutico do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este é um objetivo essencial: decisões informadas não devem assentar exclusivamente em dados clínicos e económicos, deverão também refletir a experiência concreta de quem vive com a doença. Ao envolver as APD, o INFARMED assegura que a dimensão humana é incorporada nos seus processos de regulação. O programa visa igualmente promover transparência. Ao estabelecer canais formais de participação e ao criar mecanismos de consulta frequentes, o INFARMED reforça a proximidade, permitindo que a sociedade civil compreenda melhor como são tomadas as decisões, contribuindo assim para a confiança pública na instituição.
– Como é garantida a representatividade das diferentes patologias e grupos de doentes?
– Para garantir diversidade em cada processo são consultadas todas as associações capacitadas, no âmbito do Incluir, na área terapêutica específica. Excluindo os casos em que apenas possa existir uma APD capacitada, este modelo evita a concentração de representatividade numa só entidade e promove uma visão diversificada das realidades vividas pelos doentes. A representatividade crescerá também à medida que o âmbito do Incluir for sendo alargado a mais processos e à medida que novas APD se registem e se capacitem. Trata-se de um esforço contínuo de inclusão, que procura evitar que lacunas estruturais — como recursos limitados ou menor visibilidade — impeçam a participação. A representatividade é ainda reforçada por ações de comunicação e promoção ativa do programa, que visam identificar associações que ainda não participam e incentivá-las a aproximar-se do INFARMED.
– Que tipo de contributos têm sido mais relevantes por parte das associações e dos doentes?
– Os contributos mais relevantes são aqueles que traduzem a experiência vivida da doença e que ajudam o INFARMED a perceber como as suas decisões técnicas se podem refletir no quotidiano das pessoas. São descrições sobre impacto emocional e funcional, sobre limitações reais que os tratamentos existentes trazem, ou sobre ganhos que os doentes valorizam mais do que aquilo que muitas vezes é medido nos ensaios clínicos. As APD também têm desempenhado um papel crucial ao clarificar necessidades não satisfeitas. Muitas vezes, identificam lacunas terapêuticas ou aspetos da doença que a evidência científica ainda não captou suficientemente. Este tipo de contributo ajuda a contextualizar a relevância da inovação terapêutica, que podem ser transformadoras para determinados grupos de doentes.
No campo da farmacovigilância, as associações podem ajudar a melhorar materiais educacionais, garantindo que estes são claros, acessíveis e compreensíveis pelos utilizadores finais. Este contributo é fundamental para assegurar uma utilização segura dos medicamentos, sobretudo em situações de risco identificado.
São também relevantes os contributos nas situações de indisponibilidade de medicamentos. As APD podem ajudar a enquadrar melhor as dificuldades enfrentadas pelos doentes quando a acessibilidade a um medicamento falha pontualmente e ajudar a avaliar o impacto, e as medidas de mitigação, nos casos mais graves em que essas falhas ocorrem por alargados períodos de tempo.
Em suma, o valor dos contributos é demonstrado pelo facto de que a perspetiva do doente é integrada na fundamentação das decisões, ajustando-as o mais perto possível das necessidades reais de quem delas depende.
– Em que tipos de processos o Infarmed consulta as associações de doentes? Há exemplos concretos de decisões que foram influenciadas por estas contribuições?
– Além dos exemplos explanados na resposta à questão anterior, o principal eixo de consulta é a Avaliação de Tecnologias de Saúde (ATS), onde existe já uma prática consolidada em comparação com os outros processos que apenas ficaram disponíveis a partir de 2024. Todavia, desde a criação do Incluir em 2017, registamos a oportunidade de uma efetiva participação em mais de uma centena de processos de decisão do INFARMED. Tal evidencia que o envolvimento é contínuo e não meramente pontual.
– Que tipo de ações de capacitação são oferecidas às associações para que possam participar nos processos de decisão?
– Dado ser um requisito essencial à participação formal em processos, o INFARMED promoveu em diferentes momentos ações de capacitação formais destinadas a reforçar o conhecimento das APD, em matérias complexas como o sistema de regulação do medicamento e produtos de saúde, as diferentes metodologias de avaliação e supervisão do mercado e, sobretudo, em conteúdos que se relacionam com a sua participação formal nos processos disponíveis.
Estas formações incluem elementos técnicos, exemplos práticos e momentos de interação, permitindo que as associações adquiram ferramentas essenciais para compreender os processos e participar com confiança.
Estas ações dependem das oportunidades criadas pelo INFARMED e da capacidade de participação das diferentes APD, algumas que por estarem sedeadas fora da área da grande Lisboa, nem sempre conseguem participar. Por isso, neste momento, estamos a desenvolver uma plataforma e conteúdos de capacitação assíncrona para que esse processo seja mais rápido e o mais autónomo possível e que esteja apenas dependente da capacidade e vontade de cada APD. Neste momento, tendo já a plataforma praticamente estabelecida estamos na fase de criação e desenvolvimento de conteúdos.
Considerando a capacitação como um processo progressivo, salienta-se que à medida que o Incluir se expande para novas áreas, estamos igualmente a acautelar o necessário ajuste aos conteúdos formativos, garantindo que as APD têm sempre as competências adequadas à evolução do programa.
– Quais têm sido os principais desafios na implementação do programa Incluir?
– Um dos desafios mais relevantes tem sido assegurar que todas as associações conseguem acompanhar o ritmo e a complexidade dos processos. Existe grande diversidade entre as APD em termos de recursos humanos, maturidade institucional e capacidade técnica. Outro desafio tem sido a integração com o novo Regulamento Europeu de ATS. Este novo quadro cria oportunidades, mas também exigirá ajustes significativos à realidade atual do SiNATS o qual, registe-se, se encontra a ser revisto com a inclusão de contributos das APD. O objetivo será garantir que os contributos nacionais não duplicam trabalho já realizado a nível europeu, mas que acrescentam valor.
A comunicação também é um desafio: traduzir conteúdos altamente técnicos para linguagem acessível sem comprometer rigor científico requer esforço contínuo. É fundamental que as associações compreendam o que está em causa em cada processo, para que possam contribuir de forma adequada. Paralelamente, tem sido também essencial o desenvolvimento de conteúdos de literacia associados à missão do INFARMED desenvolvidos ultimamente para os quais, ainda em fase de produção, as APD tem sido chamadas a pronunciar-se no que respeita à linguagem e eficácia das mensagens dos mesmos. Finalmente, há um desafio estrutural de assegurar que o Incluir se mantém como uma prioridade transversal como tem sido até agora.
– O que podemos esperar desta iniciativa em termos futuros?
– Num tempo em que as decisões sobre o acesso ao medicamento e às tecnologias de saúde são cada vez mais complexas, ouvi-las e envolvê-las é um dever ético e um imperativo das instituições de saúde. Desde o seu lançamento, o Incluir tem vindo a consolidar estes valores, procurando estabelecer uma relação de colaboração que valoriza a experiência do doente como fonte de evidência e como elemento qualificador da tomada de decisão no âmbito da atividade do INFARMED.
Testemunho do empenho do INFARMED, e do seu Conselho Diretivo, é a transformação do Incluir como área funcional de desenvolvimento organizacional – enquadrada na área de gestão, planeamento e coordenação executiva – no âmbito do seu novo Regulamento Interno. Esta evolução representa um investimento na cooperação, na partilha de conhecimento e na nossa responsabilidade coletiva. O futuro e o sucesso do Incluir será, acima de tudo, o resultado da manutenção de uma visão partilhada entre o INFARMED, as associações, e todos os que acreditam na participação como motor de mudança. O futuro que se ambiciona para o Incluir passará por tornar-se cada vez mais transversal e abrangente, consolidando procedimentos e a integração da perspetiva das pessoas com doença em mais processos. O trabalho realizado até agora, demonstra a maturidade que o Incluir alcançou desde a sua criação, consolidando-se como uma plataforma estruturante de capacitação e diálogo entre o INFARMED e as APD. Tal consolidação será o reflexo do contínuo compromisso do Incluir em promover uma abordagem inclusiva e participativa, onde o conhecimento técnico e a experiência vivida coexistem e se reforçam mutuamente.
– As farmácias comunitárias poderão ter (ou já têm) algum papel a desempenhar para a evolução do Incluir?
– As farmácias, principalmente através das suas associações profissionais, são parceiras de longa data do INFARMED, nesse sentido, através da participação em várias iniciativas, podemos afirmar que de uma forma indireta já são uma porta para a participação do cidadão em algumas das competências deste instituto.
Embora as farmácias comunitárias não integrem formalmente o programa, possuem características que as poderão tornar parceiros potenciais para o futuro do Incluir.
Pela sua proximidade com os cidadãos, têm uma visão privilegiada sobre dificuldades de acesso, problemas de adesão à terapêutica e questões práticas que os doentes enfrentam diariamente — elementos que complementam de forma útil a perspetiva das APD e do cidadão com doença de forma particular. O seu contributo pode ajudar a antecipar situações críticas e a articular, de forma mais eficaz, o triângulo ‘regulador–profissionais–doentes’.
No futuro, sempre num modelo que respeite a estrutura do Incluir, poderá ser encontrado espaço para integrar as farmácias de forma complementar, seja diretamente no Programa ou através das várias Direções que compõem a estrutura orgânica do INFARMED, mantendo o foco nas APD como protagonistas, mas beneficiando do conhecimento adicional que as farmácias podem oferecer.




