Hemato Pa Bô: Um sonho transformado em ação para salvar vidas 9

O projeto Hemato Pa Bô nasceu “de uma paixão além-fronteiras pela medicina laboratorial e pelo amor ao povo da Guiné-Bissau, inspirado no exemplo humanitário do meu pai, Dr. Manuel Pimenta. A sua preocupação diária com o acesso universal aos cuidados de saúde levou-o a criar um laboratório low-cost no Hospital Pediátrico de Bôr, tornando as análises acessíveis a todos, sobretudo a mulheres e crianças”, conta a farmacêutica Manuela Pimenta, responsável pelo projeto.

Foi neste ambiente único e inspirador que “iniciámos, neste hospital, a formação em Hematologia, em simultâneo, para médicos e técnicos de laboratório vindos de vários hospitais regionais e nacionais. O nosso objetivo é harmonizar conceitos e procedimentos e criar uma ligação covalente entre a clínica e o laboratório, sempre com o doente no centro”.

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Mais do que “um sonho meu e da Dra. Filipa Fernandes, este projeto tornou-se uma missão de vida que une ciência e solidariedade, inspirando os profissionais de saúde a serem líderes comunitários e a contribuir para o desenvolvimento do seu país”, continua Manuela Pimenta, acrescentando que “com o tempo, o projeto ganhou dimensão, estrutura e visibilidade e, em 2025, juntou nove pessoas extraordinárias, alinhadas com a nossa visão. Assim nasceu a Associação Hemato Pa Bô, uma associação sem fins lucrativos com sede em Ponte de Lima, em homenagem ao nosso mentor e sócio honorário n.º 1, Dr. Manuel Pimenta”.

Em entrevista ao NETFARMA e no Dia Internacional do Voluntariado (05), Manuela Pimenta partilha um pouco da história da associação e os desafios que tem encontrado pelo caminho.

– Que significados o nome Hemato Pa Bô e o que representa na prática?
– Significa, simplesmente, Hematologia Para Ti, em crioulo guineense. O nome surgiu de forma natural logo na nossa primeira formação. Gostámos dele porque refletia bem a nossa filosofia keep it simple: ensinar com base na metodologia Backwards Design-Based, simplificar as matérias, adaptá-las à realidade local e criar formações práticas, interativas e estimulantes.

O mais importante é que, no final, cada formando saiba identificar patologias, relatar as alterações morfológicas observadas, reconhecer as emergências hematológicas e saber o que não pode escapar. No laboratório também se salvam vidas. O microscópio é o nosso símbolo e será sempre a nossa arma na luta pela vida.

– Que marcos importantes destacaria desde o início do projeto?
– Existe um histórico notável de cooperação portuguesa com a Guiné-Bissau, que abrange hospitais em Bissau e noutras regiões, instituições religiosas, maternidades, clínicas privadas, escolas, Aldeias SOS e orfanatos.

Para mim, há três marcos importantes que representam a essência desta cooperação: o LaBor,laboratório de análises clínicas low-cost do Hospital de Bôr; o Instituto Dom Settimio, idealizado e iniciado pelo meu pai para o treino prático dos técnicos de laboratório; e a Maternidade e Casa das Mães de Cacheu, onde todos os dias se salvam vidas.

O Hemato Pa Bô nasceu deste passado de entreajuda e foi criado para dar resposta a problemas muito concretos: a escassa formação em medicina laboratorial, a elevada prevalência de anemia e a mortalidade materna e infantil por causas evitáveis.

Em 2024, no espaço de um mês, perdemos os nossos maiores mentores e impulsionadores, o meu Pai e o Dr. José Cortez, duas figuras marcantes da medicina laboratorial. Foi um choque tremendo, mas decidimos continuar a caminhada e manter vivo o legado de dedicação e cooperação com a Guiné-Bissau. A resiliência e o espírito de missão falaram mais alto, porque era urgente continuar a lutar contra a mortalidade materno-infantil em África.

E, assim em 2025, renascemos das cinzas. Num bootcamp inspirador, realizado num espaço rural, entre partilhas e sonhos, decidimos, com os outros membros fundadores, avançar para a criação da Associação Hemato Pa Bô.

Hoje, olhando para trás, sei que, apesar das dores de crescimento, demos o passo certo.

– Por que escolheram os PALOP, e em particular a Guiné-Bissau, como prioridade?
– Foi na Guiné-Bissau que tudo começou. A obra. A cooperação. O propósito. A missão. Em 2018, no Hospital de Bôr, desenvolvi a minha tese de mestrado. O objetivo inicial era estudar a prevalência de parasitoses em mulheres e crianças infetadas com o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), mas rapidamente percebi a gravidade da anemia na população estudada e os riscos acrescidos quando coexistia com o VIH e a malária por Plasmodium falciparum. Chamei-lhe o “triângulo da morte” e desde aí nunca mais parei de o combater.

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Já realizámos formação presencial em São Tomé e Príncipe e, à distância, em Moçambique. Os PALOP serão sempre a nossa prioridade, mas também toda a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), através do nosso envolvimento no Projeto de Melhoria da Qualidade Laboratorial para Países de Língua Portuguesa (ProMeQuaLab).

Em 2023, reunimos com a African Society for Laboratory Medicine (ASLM) para avaliar uma eventual colaboração futura.

A nossa ligação aos PALOP, para além de histórica, será sempre fraterna e umbilical.

– Como descreveria a realidade local em termos de medicina laboratorial e saúde materno-infantil?
– Ao longo destes anos tenho observado de perto a realidade da Guiné-Bissau, que continua a ter uma das taxas de mortalidade materna mais elevadas do mundo: 667 por 100 mil nados-vivos e uma mortalidade infantil de 69 por mil, sobretudo nas primeiras semanas de vida. Estes números deviam envergonhar-nos a todos, porque se trata de um país irmão, que fala a nossa língua.

A anemia afeta metade das grávidas e uma percentagem ainda maior nas crianças. A malária é endémica e a prevenção na gravidez ainda é muito baixa. O VIH tem uma prevalência significativa nas mulheres, aumentando o risco de transmissão vertical.

O laboratório pode ser uma arma poderosa nos locais de parcos recursos. Um pacote mínimo de análises nas grávidas: hemograma completo, glicemia, creatinina, exame sumário de urina, rastreio de malária, pesquisa de Streptococcus do grupo B, serologias para VIH, vírus da hepatite B e sífilis (VDRL/TPHA), iria cobrir 80% das causas de mortalidade materno-infantil evitável: anemia, hemorragia pós-parto, infeções, malária, VIH e complicações hipertensivas.

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Mas o diagnóstico só faz sentido se houver terapêutica disponível e acessível. Aqui é fundamental reforçar as farmácias hospitalares com medicamentos básicos: ferro e ácido fólico para todas as grávidas, antibióticos de primeira linha para as infeções, oxitocina e misoprostol para prevenir e travar hemorragias pós-parto e sulfato de magnésio para controlar a pré-eclâmpsia.

Quando os recursos são limitados, a prioridade não é a complexidade, mas sim garantir o essencial: profissionais bem preparados, unidades de saúde minimamente equipadas e protocolos claros que permitam decisões rápidas e eficazes.

Com menos de 50€ por grávida, podemos fazer uma grande diferença.

O meu lema é simples: Low-Cost Labs & Life-Saving Pharmacies.

– Já realizaram ações de campo? Que impacto tiveram?
– Na Guiné-Bissau já realizámos três missões de formação em medicina laboratorial que envolveram 51 profissionais de saúde, vindos de 13 instituições diferentes, num total de 87 participações. Muitos regressaram mais do que uma vez, porque sabiam que cada formação trazia algo de novo. São os nossos Super-Heróis e é um orgulho acompanhar de perto a caminhada de cada um. A maioria está hoje a prosseguir formação avançada dentro ou fora do país.

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Cada edição foi única, trouxemos novos formadores, novas valências e desafios adaptados aos problemas locais. Hoje já existe uma rede de hospitais que acredita neste modelo e continua a enviar os seus profissionais para adquirirem não só competências técnicas, mas também capacidades de comunicação, trabalho em equipa e liderança.

O próximo passo será o Train the Trainer, para que os nossos Super-Heróis repliquem o que aprenderam e assegurem a continuidade e a sustentabilidade desta capacitação no terreno. Realizámos também uma missão em São Tomé e Príncipe, em parceria com o Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF), no âmbito do Programa Saúde Para Todos, para 21 médicos e técnicos, e recentemente formação à distância para alunos da Universidade de São Tomé e Príncipe.

Com a FirstPharma colaborámos em várias missões solidárias, incluindo o envio de 10 paletes de donativos, quase três toneladas de medicamentos e dispositivos médicos e também camas articuladas e cadeiras de rodas para crianças com graves problemas de saúde de um orfanato de Bissau. E também, em conjunto, capacitação de equipas locais e comunidades desfavorecidas.

Com a Associação Lusófona de Especialistas em Doença Falciforme (ALUA) e a Egas Moniz School of Health and Science implementámos o projeto #KaTeneDrepa em Bissau no Hospital Renato Grandi. Graças a uma bolsa da Fundação Santander conseguimos levar connosco uma estudante de Ciências Biomédicas Laboratoriais da Egas Moniz. Em paralelo, lançámos uma campanha de crowdfunding que juntou 70 doadores e angariou 5.024,69€, valor que permitiu financiar um equipamento Point-of-Care (POC), hoje em pleno funcionamento, e ainda sobrou para adquirir mais dois.

Temos participado em inúmeros podcasts, congressos e eventos científicos para falar das missões humanitárias em África e experiências vividas no terreno.

Tenho um sonho que gostava de realizar: levar a Bissau o colega brasileiro, Prof. Paulo Merísio, para uma formação intensiva em hematologia, de A a Z, destinada a todos os profissionais de saúde, vindos de todos os hospitais do país e das ilhas. As suas aulas online já são uma fonte de conhecimento e inspiração para os nossos Super-Heróis. Realizar esta formação em Bissau seria um momento histórico para a hematologia na Guiné-Bissau.

– Como é constituída a vossa equipa?

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

– A nossa equipa é um puzzle de 9 peças, onde cada elemento aporta valor pela sua identidade, pelo seu know-how e pela vontade de fazer a diferença. Os farmacêuticos e os médicos constroem pontes entre o diagnóstico, a clínica e o tratamento farmacológico; o engenheiro traz inovação e soluções pensadas para contextos de poucos recursos; os peritos em qualidade e os docentes universitários acrescentam pedagogia e rigor académico e laboratorial; os especialistas em saúde pública ajudam-nos a pensar global, a alinhar estratégias e a mobilizar recursos. Este puzzle ainda não está completo e há lugar para quem se queira juntar a esta causa.

Somos uma espécie de cowork solidário, feito de mundos, percursos e vivências diferentes e onde a ciência se junta à experiência do terreno. Unimos profissões, derrubamos barreiras e criamos um espaço comum ao serviço de uma Causa Maior.

É na diversidade que está a nossa força e a nossa singularidade.

– Que desafios enfrentam em termos logísticos e de financiamento?
– A logística é o nosso calcanhar de Aquiles. Três obstáculos concretos: Primeiro, o transporte e a calendarização, com custos elevados e prazos instáveis; Segundo, o desalfandegamento e a elevada burocracia, com isenções nem sempre aplicáveis e taxas inesperadas; Terceiro, o last mile, estradas degradadas e cadeia de frio difícil de assegurar. É um verdadeiro calvário.

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Mas o desafio não é só logístico. O financiamento da Associação é igualmente crítico. Para termos impacto real precisamos de recursos para projetos no terreno, para capacitar os profissionais, desenhar e implementar as formações, apoiar maternidades, farmácias hospitalares e os pequenos laboratórios regionais, garantir a qualidade e a sustentabilidade.

Já mostramos que conseguimos mobilizar, o crowdfunding do #KaTeneDrepa foi um sucesso e a sociedade civil respondeu em força. Mas não podemos viver apenas de campanhas pontuais. É fundamental ter doadores regulares, mecenas e parcerias sólidas com instituições, fundações e empresas que assegurem continuidade. Só assim conseguimos sair da lógica da emergência e trabalhar com impacto duradouro. Formar um profissional local custa cerca de 200€. Cada ajuda é uma lufada de ar fresco.

– Quais são os próximos passos da Hemato Pa Bô?
– A nossa visão é reduzir a mortalidade materno-infantil na Guiné-Bissau até 2030, garantindo acesso equitativo a diagnóstico de qualidade e capacitação contínua.

Queremos continuar a capacitar os Super-Heróis e outros profissionais de saúde, desenvolver tecnologias inovadoras no LaBor e noutros hospitais, implementar POC em locais remotos, apoiar a Maternidade e Casa das Mães de Cacheu e expandir o #KaTeneDrepa.

Capacitar as farmácias hospitalares regionais e os centros de saúde mais remotos.

Manter as colaborações com instituições como FirstPharma, ALUA, IMVF, Egas Moniz, Universidade Lusófona, Secção Regional do Norte da Ordem dos Farmacêuticos.

Participar na organização de um congresso de medicina laboratorial em Bissau.

Criar o Grupo Amigus di Hemato, uma comunidade de amigos e apoiantes que acreditem na missão e se tornem embaixadores desta causa.

Lançar o Projeto Zeru Anemia em 2026. Integrar diagnóstico de qualidade, formação de profissionais e acesso ao tratamento, sempre com foco nas mães e crianças.

No final de setembro voltei à Guiné para dar continuidade aos nossos projetos e colaborar com a Brigada Solidária FirstPharma nos projetos deles. Mais uma vez, distribuímos medicamentos e produtos de saúde, doados pela indústria farmacêutica, a 18 instituições, católicas, públicas, privadas, de cariz social e comunitário. Na vida humanitária, este companheirismo e sinergia de missões é essencial, porque há sempre muito por fazer.

Eu chamo-lhe poliamor humanitário, amar várias causas ao mesmo tempo.

– Como é que os farmacêuticos podem envolver-se ou apoiar a associação?
– Todos os farmacêuticos são bem-vindos. Todos! E podem apoiar a Associação de várias formas:

Créditos: Fotografias cedidas por Manuela Pimenta

Apoio técnico: organizar webinares, colaborar na formação de profissionais de saúde no terreno ou à distância e criar bolsas de especialistas nas áreas mais críticas: farmácia hospitalar, diagnóstico laboratorial, farmacologia, resistência antimicrobiana, saúde materno-infantil, doenças tropicais, qualidade, gestão, logística e cadeia de abastecimento, saúde pública, advocacy em saúde global e policy making. Juntos iremos multiplicar o impacto.

Apoio organizacional: participar na revisão de conteúdos, elaborar e implementar protocolos, desenhar projetos, fazer mentoria, organizar eventos solidários, apoiar na angariação de fundos, comunicação e redes sociais. O planeamento começa em terra e é nos bastidores que se constrói o sucesso de uma missão.

Apoio financeiro: tornarem-se seguidores e doadores regulares, seja a nível individual ou empresarial, mobilizar mecenas e parceiros que nos apoiem nos projetos e nas candidaturas a bolsas nacionais e internacionais. São passos simples, mas decisivos, para que a Associação tenha futuro e um impacto duradouro.

Dar à luz não pode ser uma sentença de morte. Juntem-se a nós e façam parte desta missão.

Mais informações aqui.