Farmácia Nova Vilar de Maçada: A realidade de quem trabalha (praticamente) sozinho no terreno 2328

João Matu é farmacêutico, diretor técnico e proprietário da Farmácia Nova Vilar de Maçada, uma pequena vila do concelho de Alijó, no distrito de Vila Real. Quando a extensão de saúde local foi encerrada, não ficou à espera. Criou o projeto ‘Receitas Mobile’ e fez da farmácia um elo de ligação entre a comunidade e o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mais do que medicamentos, oferece proximidade, escuta e soluções.

Com apenas nove anos de existência, a Farmácia Nova Vilar de Maçada é, hoje, um verdadeiro pilar de saúde e apoio à população, tendo lançado uma iniciativa que ajuda a combater as fragilidades e vulnerabilidades do interior do país. “O projeto pretende facilitar o acesso a medicamentos e meios de diagnóstico a idosos em situação de profundo isolamento”, resume João Matu.

Contrariar o isolamento

A poucos quilómetros da fronteira com o Douro, entre vinhas e vales profundos, vive-se uma realidade onde o acesso à saúde se tornou, para muitos, uma corrida com obstáculos. Em Vilar de Maçada, a farmácia tornou-se o porto seguro de pouco mais de 700 habitantes, maioritariamente idosos que se dedicam à agricultura (vitivinicultura), que ficaram sem extensão de saúde local e sem transporte público regular.

Foi nesse cenário que nasceu o projeto ‘Receitas Mobile’, criado e dinamizado por João Matu. O objetivo? Diminuir distâncias, colmatar falhas e garantir que ninguém fica sem cuidados por viver longe de tudo. “O sentimento de abandono por parte do SNS e o sofrimento dos idosos carenciados, sentido diariamente na farmácia, levaram-nos a agir. Não podíamos ficar indiferentes atendendo à longa distância para o Centro de Saúde de Alijó”, avança.

A farmácia passou a estabelecer a ligação entre os utentes e o Centro de Saúde de Alijó, localizado a mais de 20 quilómetros dali. Com o sistema montado pelo projeto “Receitas Mobile”, tudo mudou: “Na farmácia, recolhemos os dados da pessoa – nome completo, data de nascimento, número de utente e número de telemóvel – e enviamos, por email, o pedido dos medicamentos crónicos e exames de rotina ao médico de família. O utente recebe depois um SMS com a receita, que apresenta aqui para levantar os medicamentos de que precisa”. E há mais. Muitas vezes, os profissionais do centro de saúde solicitam à farmácia informações adicionais, como valores de tensão arterial. “Nesses casos, o clínico pode contactar diretamente o paciente e aproveitar para ajustar a posologia ou a medicação”, esclarece. “A nossa farmácia tornou-se um posto de saúde num sentido geral, porque resolvemos os problemas. E isso passou a ser o foco da nossa missão, uma missão adaptada à nossa realidade”, realça.

Desde 2021, ano em que o projeto arrancou, a intervenção não parou de crescer. “Atualmente, a farmácia cede gratuitamente o seu gabinete de atendimento personalizado (GAP) a um laboratório de análises clínicas, que realiza recolhas e eletrocardiogramas semanalmente, mediante a apresentação da prescrição médica. Os resultados são entregues em papel ao paciente e seguem diretamente para o seu médico assistente, que avalia a necessidade de convocá-lo ao centro de saúde. As receitas obtidas através do ‘Receitas Mobile’ são também utilizadas por este laboratório”, explica o nosso entrevistado.

Ainda no âmbito deste projeto, e “atendendo às carências sentidas junto da população”, a farmácia “cede gratuitamente o referido GAP a pedido da Câmara Municipal de Alijó para a instalação de um posto de atendimento e de consultas à distância, principalmente para os idosos e pessoas incapacitadas, que também é utilizado em situações de urgência”. Pelas mesmas razões, e sem custos para os utentes, a farmácia receciona essas receitas e disponibiliza-se para levantar os medicamentos hospitalares no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD), situado em Vila Real, a cerca de 30 quilómetros de Vilar de Maçada. “Levantamos os medicamentos junto dos nossos colegas do hospital, que, depois de devidamente registados, são entregues aos pacientes, enquanto aguardamos a regulamentação”, expõe. “Os pacientes não podem continuar à espera, nem nós”, desabafa.

Quando a farmácia é a porta – e o caminho – para o SNS

Com o passar do tempo, a Farmácia Nova Vilar de Maçada deixou de ser apenas o ponto de contacto para levantamento de medicamentos. Tornou-se, efetivamente, um verdadeiro posto de saúde comunitário. “As pequenas farmácias localizadas no interior do país, como esta em Vilar de Maçada, não são só uma porta de entrada para o SNS, como também um complemento indispensável na assistência à população destas localidades”, defende João Matu. “Apoiadas nas formações de situações clínicas ligeiras, conseguimos dar resposta onde mais falta ela faz.”

A capacidade de resposta da farmácia tornou-se evidente na prática. Desde a implementação do projeto, não restam dúvidas: “Conseguimos resolver um problema. Sem este projeto, seria um transtorno enorme com implicações na saúde dos utentes”. O farmacêutico traça um exemplo concreto: “Imaginemos uma idosa a viver sozinha, com mobilidade limitada, que teria de perder um dia inteiro para apanhar autocarros ou alugar táxis, com o pouco dinheiro da reforma, para se deslocar a Alijó ao centro de saúde, só para pedir uma receita médica. E, ainda assim, poderia ter de voltar para casa sem a receita, caso o médico não estivesse ou estivesse indisponível nesse dia”.

Levar a saúde ainda mais longe

O impacto do projeto na vida dos utentes é visível, mesmo sem que estes o verbalizem todos os dias. “Acreditamos que haja um enorme alívio e satisfação dos utentes e da comunidade em geral”, partilha João Matu. O reconhecimento vem do olhar dos idosos que já não precisam de se preocupar com deslocações morosas, da tranquilidade das suas famílias e da confiança crescente no papel da Farmácia como estrutura de saúde de proximidade.

A vontade de fazer mais continua viva, havendo um objetivo que permanece por concretizar. “Para lá de um projeto, é um sonho: contratar um farmacêutico adjunto ou um farmacêutico estagiário. Caso consigamos reunir essa condição, pretendemos implementar uma deslocação mensal às aldeias mais distantes, indo ao encontro dos idosos mais isolados e abandonados por todos, com o intuito de verificar a adesão à terapêutica, aconselhar e proceder ao controlo de alguns parâmetros bioquímicos”, revela. E para que se perceba o verdadeiro impacto dessa presença, o diretor técnico deixa um dado: “Estes idosos só têm, em média, duas consultas programadas por ano”.

De facto, à volta da freguesia de Vilar de Maçada, existem ainda muitas pessoas em situação de isolamento que precisam de ser integradas neste círculo de cuidados. Essa intervenção, garante, será feita em estreita colaboração com o médico de família, como já é prática neste projeto. Porque, mesmo no interior mais profundo, o acesso à saúde não pode ser um luxo.

Fazer muito com pouco

A execução de projetos como o ‘Receitas Mobile’ exige mais do que sensibilidade social. Requer, também, resiliência perante os obstáculos e criatividade para contornar os limites de recursos. João Matu admite que, sem apoios, teria sido impossível manter o projeto em funcionamento. “Por mais vontade profissional que tenha e uma sensibilidade aos problemas dos utentes com quem contacto diariamente, se não fosse o Programa de Coesão Territorial das Farmácias, da Associação Nacional das Farmácias (ANF), tenho a certeza de que não aguentaria – eu e a população que servimos”, reconhece.

A ausência de reconhecimento por parte das entidades públicas também pesa. “O Estado é distante… não vê e, consequentemente, não sente”, lamenta o farmacêutico. Num território onde a presença do SNS se esbate, são as farmácias que assumem responsabilidades que extravasam largamente o seu papel tradicional, sem que isso se reflita em apoios estruturais ou financiamento justo.

Apesar das dificuldades, a Farmácia Nova Vilar de Maçada encontrou os meios para fazer a diferença. “A vontade profissional e as novas tecnologias foram os elementos necessários para implementar este projeto”, sintetiza João Matu. Não foi preciso esperar por soluções externas, apenas encontrar dentro da própria equipa, do sector e da comunidade a coragem para agir. E, com isso, provar que é possível, mesmo com poucos meios, mudar profundamente a vida de uma localidade.

Crescer com as pessoas

Inaugurada em outubro de 2016, a Farmácia Nova Vilar de Maçada tem-se guiado pelo lema ‘Uma relação de proximidade’. E é esse olhar atento – de quem conhece bem a comunidade – que faz toda a diferença. “O olhar de quem conhecemos bem, permite-nos decifrar para lá da receita que estamos a aviar e ajudar na medida do possível”, sublinha João Matu.

Desde que preencheu a rubrica ‘Farmácia Atual’ da revista Farmácia Distribuição, no início de 2023, a farmácia cresceu, não apenas em serviços, mas também em equipa: “Crescemos como farmácia, o que nos permitiu recrutar uma colaboradora, dando-me mais tempo, enquanto diretor técnico, para me focar nas situações específicas das pessoas e da gestão”.

Além da continuidade do projeto ‘Receitas Mobile’, a farmácia está a implementar uma plataforma de venda online, em parceria com a ANF, e continua a levar a saúde e a sustentabilidade aos mais pequenos. “Vamos pontualmente aos jardins de infância e às escolas da freguesia para divulgar a profissão farmacêutica e o projeto Valormed, sensibilizando para a pegada ecológica”, confirma. Adicionalmente, a Farmácia Nova Vilar de Maçada é uma Unidade de Apoio ao Hipertenso (UAH) e presta diversos serviços farmacêuticos, com destaque para preparação individualizada da Medicação (PIM). “Organizamos e entregamos a medicação para os idosos necessitados, é uma grande ajuda”, salienta.

Ao fim de quase nove anos de existência, o farmacêutico faz um balanço claro: “Todos os sacrifícios pessoais e profissionais valeram a pena, porque conseguimos aliviar alguns problemas que as pessoas teriam na área da saúde e do medicamento”.

Uma mensagem para o interior

A candidatura da Farmácia Nova Vilar de Maçada ao Prémio Almofariz Intervenção na Comunidade 2024 surgiu com uma intenção clara: inspirar. “O objetivo da nossa candidatura foi transmitir uma mensagem aos nossos colegas de que podemos aproveitar as novas tecnologias para continuarmos a servir os utentes da mesma forma que o farmacêutico de oficina serviu ao longo da história, principalmente as farmácias mais pequenas do interior”, afirma João Matu. Foi a primeira vez que a farmácia participou num prémio desta natureza, e fê-lo por acreditar que a inovação também nasce em territórios esquecidos.

“A maior parte das nossas ações não são remuneradas, atendendo ao contexto sociogeográfico”, lembra. No entanto, “temos de manter a empresa – neste caso, a farmácia – estável e moderna para ser um espaço de saúde atrativo”. É esse equilíbrio entre sustentabilidade e missão social que o projeto tenta manter. E é também por isso que o farmacêutico considera que a candidatura a este prémio faz sentido: “A distinção dar-nos-ia uma motivação extra para continuarmos a desbravar caminhos que podem ser inspiradores para outras farmácias, principalmente as pequenas do interior do país. Assim, trancar o êxodo para os grandes centros, deixando para trás quem mais precisa”.

Em 2025, João Matu não tenciona voltar a concorrer ao Prémio Almofariz Intervenção na Comunidade. “Não há novidades naquilo que faço e, além disso, redigir e preparar a candidatura tira-me tempo porque estou praticamente sozinho”, justifica. Uma resposta honesta, que espelha o dia a dia de quem, com poucos meios e muito coração, continua a fazer da farmácia um farol de saúde num território onde tanto falta.

 

Caixa

Farmácia Nova Vilar de Maçada

Morada

Largo do Adro, 6

5070-576 Vilar de Maçada

Telefone

259 918 086

E-mail

farmacianova.vilardemacada@gmail.com

Redes Sociais

www.facebook.com/farmacia.nova.vilardemacada

www.instagram.com/fnovavilardemacada

 

Artigo publicado originalmente na edição #390 da revista FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO, na rubrica ‘Intervenção na Comunidade 2024’, destacando projetos de farmácias do país que se candidataram, no ano passado, ao Prémio Almofariz Intervenção na Comunidade by Laboratórios Azevedos.