Farmacêuticos dão saúde ao ambiente 208

A natureza foi o primeiro laboratório farmacêutico onde se procuraram as plantas, os animais ou os minerais que pudessem melhorar a saúde. Volvidos milénios de conhecimento é à natureza que temos de voltar para novas soluções e reencontro de equilíbrios fundamentais à vida humana.

Uma Só Saúde (One Health) resgata o paradoxo de que a saúde humana não pode ser dissociada da saúde dos animais e do ambiente. É mais que um regresso às origens porque usamos todo o poder da ciência moderna para encontrar novos compromissos que compatibilizem a saúde e o meio ambiente.

Reconhecemos que as atividades humanas têm impacto no ambiente e, como tal, há impactos na saúde documentados pelas mudanças ambientais. Sabemos que aumento do calor, as chuvas irregulares e os fenómenos extremos (inundações, secas, incêndios) causam problemas de saúde relevantes. As alterações de calor e humidade alteram ecossistemas e vetores de doenças, como os insetos, mudando epidemiologias. A poluição do ar causa problemas respiratórios e cardíacos e as águas contaminadas causam envenenamentos. A desflorestação aproxima espécies selvagens de seres humanos trazendo novos riscos e novas doenças.

Segundo as Nações Unidas, cerca de 1 em cada 4 mortes no mundo está associada a fatores ambientais, como a poluição do ar, da água ou do solo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, os principais problemas de saúde causados por esses fatores são doenças cardíacas, infeções respiratórias, diarreias e alguns tipos de cancro.

É assim fundamental que os farmacêuticos acompanhem estes impactos que, já hoje, colocam novos desafios à saúde.

Contudo, geralmente, como profissionais de saúde estamos habituados a ver-nos do “lado certo”, trabalhando todos os dias para salvar e melhorar vidas. Partimos deste princípio de Primum non nocere em que, antes de mais, não queremos fazer mal.

Mas há um lado menos lustroso do sistema de saúde em que, ele próprio, causa danos ao ambiente e, de facto, o próprio sistema de saúde contribui para problemas de saúde. A contrário do que desejamos a intervenção em saúde está também a contribuir para agravar problemas de saúde.

Estima-se que, em Portugal, o setor da saúde represente mais de 5% das emissões nacionais de gases com efeito de estufa (GEE), atendendo ao impacto do consumo de energia, dos transportes de materiais e pessoas, de várias cadeias de abastecimentos.

Deste impacto relevante, estima-se que a pegada do medicamento possa ser metade do total da emissão de GEE. Reconhece-se assim que os medicamentos têm impactos decorrentes do elevado volume de utilização e que têm associados complexos processos de investigação, desenvolvimento, conservação, transporte e condições de utilização. Basta refletirmos, por exemplo, no consumo energético associado à extensa cadeia de frio que acompanha uma insulina desde o momento da sua produção até ao exato momento de uso pelo doente. Acrescem ainda problemas resultados de medicamentos não usados, ou mal usados, que causam problemas ambientais, nomeadamente toxicológicos.

A mitigação do impacto ambiental do sistema de saúde implica, desde logo, responsabilidades farmacêuticas e necessitará de mudanças também ao nível da forma como usamos medicamentos. É com esta responsabilidade que a Ordem dos Farmacêuticos constituiu o Grupo de Interesse Medicamento e Ambiente e produziu já um posicionamento global sobre este importante tema: Medicamento e Ambiente

Neste âmbito identificam-se já atividades e matérias sobre as quais os farmacêuticos têm deveres e oportunidades de intervenção no sistema de saúde.

Gestão ambiental do medicamento

A produção, distribuição e eliminação de medicamentos têm impactos ambientais significativos. Estudos internacionais identificaram mais de 600 resíduos farmacêuticos em águas naturais. Os farmacêuticos devem promover práticas sustentáveis, como a recolha de medicamentos não utilizados, a seleção de fármacos com menor impacto ambiental e a educação da população sobre a gestão de resíduos responsável. A inclusão da dimensão ambiental no “uso racional do medicamento” é urgente.

Combate à resistência antimicrobiana

A capacidade de microrganismos (bactérias, vírus, fungos e parasitas) de sobreviver aos efeitos de medicamentos (como antibióticos, antivirais, antifúngicos, etc.) emerge como um dos maiores desafios globais de saúde pública. É necessária uma resposta coordenada entre saúde humana, animal e ambiental. Os farmacêuticos comunitários e hospitalares têm um papel essencial na vigilância do uso de antibióticos, na implementação de programas e sensibilização para o seu uso racional.

Literacia em saúde e sustentabilidade

A educação da população, e dos próprios profissionais de saúde, sobre os impactos ambientais da saúde é uma responsabilidade partilhada. Os farmacêuticos podem liderar os processos de transformação da literacia ambiental e farmacêutica, capacitando os decisores, profissionais e cidadãos para escolhas mais conscientes.

Integração em políticas públicas e redes interprofissionais

O elevado impacto ambiental do sistema de saúde exigirá a adoção de medidas políticas que promovam a sustentabilidade, também ambiental, do sistema de saúde. A participação de farmacêuticos em iniciativas multidisciplinares será essencial para o sucesso de qualquer estratégia neste equilíbrio da saúde com o ambiente.

Investigação e inovação farmacêutica sustentável

A investigação farmacêutica passará a incorporar critérios ecológicos, desde o desenvolvimento de novos medicamentos até à sua avaliação pós-comercialização. A promoção de eco-design, a redução da pegada de carbono na cadeia de produção e a monitorização dos impactos ambientais dos fármacos são áreas onde os farmacêuticos podem liderar a transformação necessária.

A abordagem Uma Só Saúde é uma componente essencial da evolução dos cuidados de saúde e, para os farmacêuticos, uma importante oportunidade de intervenção. Não basta tratar da doença, nem apenas promover a saúde de forma isolada. De forma cada vez mais relevante, cuidar da saúde terá de tratar bem do ambiente.

Num século  pleno de desafios, aos farmacêutico caberá assumir a recente revisão do seu Código Deontológico em que  “deve ter um papel ativo nas iniciativas que promovam a sustentabilidade ambiental através de ações de sensibilização e formação que visem a promoção do uso racional do medicamento e outros produtos de saúde” (cf. Artigo 14,º do Código Deontológico da Ordem dos Farmacêuticos, Regulamento n.º 1019/2024, de 2 de setembro).

Cada vez mais, a saúde é uma só e os farmacêuticos são parte imprescindível das respostas multidisciplinares cada vez mais necessárias.

Humberto Alexandre Martins
Presidente Direção Regional Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos
Coordenador Grupo Interesse Medicamento e Ambiente