“Os PALOP enfrentam vários desafios no desenvolvimento de estruturas éticas e legais robustas para a condução e regulação de Ensaios Clínicos (EC), nomeadamente lacunas legislativas, fragilidades institucionais, falta de regulamentação adequada, escassez de profissionais qualificados e procedimentos pouco consolidados”, salienta Maria do Céu Patrão Neves, coordenadora do Projeto CT-Luso, ao NETFARMA.
Partindo da premissa de fazer a antevisão do Simpósio Internacional Lusófono ‘Harmonização regulamentar e processual lusófona para Ensaios Clínicos: é possível?’, que vai acontecer a 25 de setembro, em Lisboa, a responsável fala, além dos desafios, da importância da harmonização regulamentar para a realização de ensaios clínicos e como o projeto CT-Luso tem contribuído para aproximar os países lusófonos neste domínio.
– Qual é o principal objetivo deste simpósio e por que foi escolhido o tema da harmonização regulamentar para ensaios clínicos?
– Este Simpósio internacional, reunindo seis países – Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Portugal –, é o primeiro evento público do CT-Luso, um projeto de capacitação ética e regulamentar na área dos ensaios clínicos, que se iniciou em setembro de 2024 e termina em dezembro de 2027.
A reunião tem dois objetivos principais. Um primeiro, é o de apresentar o trabalho que já foi feito, ao longo deste primeiro ano do projeto, visando precisamente a harmonização regulamentar para a investigação biomédica em geral e para os ensaios clínicos em particular. Queremos apresentar um Estudo Legislativo Comparativo, elaborado, entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025, pela equipa internacional de juristas, liderada pelo Centro de Direito Biomédico, da Universidade de Coimbra, que retrata a realidade de cada um dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa PALOP) e identifica o que urge implementar em cada um para estabelecer as condições necessárias para a realização de ensaios clínicos. Queremos também debater, sobretudo com os Sr.s Embaixadores dos PALOPs, as iniciativas políticas que importa desenvolver para vir a concretizar o trabalho teórico já realizado, sendo este o segundo objetivo do Simpósio.
A harmonização regulamentar na área dos ensaios clínicos é o objetivo mais amplo e ambicioso do CT-Luso, o qual já está a ser construindo e que importa continuar a desenvolver e reforçar para se vir a concretizar plena e rapidamente.
– Qual a importância da harmonização regulamentar para a realização de ensaios clínicos?
– Esta harmonização, uma vez alcançada, permitirá aos PALOPs apresentarem-se aos consórcios internacionais como um núcleo de países, com diferentes realidades geográficas e demográficas, atraente para a realização de ensaios clínicos a partir de um quadro legislativo robusto, de instituições profissionais bem articuladas e ágeis, e de processos desburocratizados. Com efeito, este enquadramento ético-jurídico, alinhado com as boas práticas internacionais, será então similar em todos os PALOPs, facilitando a submissão, por parte dos promotores, de um único protocolo de investigação à apreciação das autoridades competentes dos cinco países, dado que os requisitos de submissão e os critérios de apreciação serão os mesmos. A realização de ensaios clínicos é hoje reconhecida em todo o mundo como um fator importante no desenvolvimento de um país.
– O simpósio prevê a apresentação de propostas ou recomendações formais para avançar com esta harmonização?
– O Simpósio pretende primeiramente abrir a discussão no plano institucional e político. Ao nível político contaremos com os Sr.s Embaixadores dos PALOPs; ao nível institucional teremos a participação de 15 profissionais dos PALOP, representantes das Autoridades Reguladoras do Medicamento, dos Comités Nacionais de Ética e os juristas nomeados pelos respetivos Ministérios da Saúde. Estes últimos, em conjunto com a coordenação do projecto, farão uma análise do enquadramento ético-jurídico da investigação biomédica em cada país, dos modelos de funcionamento das respetivas instituições competentes na área dos ensaios clínicos, identificando o(s) requisito(s) necessários ainda em falta ao nível quer legislativo, quer processual.
Esta análise conduzirá precisamente à elaboração de Recomendações gerais e específicas, por país, bem fundamentadas e claramente formuladas para que possam vir a ser facilmente utilizadas como orientações adequadas para promover a mudança.
Vale a pena acrescentar que, durante o Simpósio, os três representantes de cada PALOP vão apresentar um plano estratégico de ação coerente (racional e ágil) a implementar para operar a mudança que se pretende ao nível do enquadramento jurídico e para o funcionamento articulado da Autoridades Reguladoras do Medicamento e do Comissões de Ética para a Investigação. Serão apresentadas metas precisas a alcançar, a sua respetiva calendarização, e estratégias adequadas de concretização.
As propostas dos profissionais africanos, as Recomendações elaboradas conjuntamente com a coordenação serão debatidas numa mesa-redonda com os Sr.s Embaixadores de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
– Como é que o projeto CT-Luso tem contribuído para aproximar os países lusófonos neste domínio?
O CT-Luso foi desenhado e estruturado na continuidade de um projeto anterior, o BERC-Luso, que decorreu entre 2018 e 2022, ambos visando a capacitação ética e regulamentar na área dos ensaios clínicos, que se desenvolve nos cinco PALOP. Ou seja, a equipa de coordenação do CT-Luso já vem trabalhando com os seus parceiros africanos desde 2018. E foi precisamente o sucesso do BERC-Luso, a coesão entre os 6 países parceiros, que motivou à elaboração de um segundo projeto construído sobre
Ao envolver todos os PALOP e os profissionais das entidades competentes na área da investigação biomédica, desde 2018, num trabalho regular continuo e consistente tem-se conseguido constituir uma verdadeira comunidade lusófona neste âmbito da regulamentação ético-jurídica da investigação biomédica. É neste ambiente de desenvolvimento de conhecimento, de partilha de experiências, de elaboração de planos de ação que uma mudança efetiva já se torna visível nos planos legislativos (harmonização regulamentar), institucional (harmonização de processos) e profissional (harmonização de conhecimentos e práticas de base).
O projeto pretende:
- A curto prazo, reforçar e harmonizar o enquadramento ético-legal para a realização de ensaios clínicos (EC), o modo de funcionamento das instituições competentes para monitorizar o seu ciclo de vida e a formação de profissionais para gerir o processo, em prol da validação internacional da investigação;
- A médio prazo, criar uma comunidade de prática, pelo envolvimento de diversas partes interessadas, para promover a investigação científica, dado o seu impacto na cultura científica e no desenvolvimento socioeconómico, e a sua integração em redes internacionais alargadas e credíveis
- A longo prazo, construir as bases sólidas para a formação de um núcleo lusófono de ensaios clínicos que permita a submissão de protocolos de investigação para implementação nos cinco PALOP atraindo, assim, investimento internacional, agilizando processos, otimizando recursos e reforçando o âmbito e a qualidade da investigação.
– Que impacto espera que este evento tenha na cooperação entre Portugal e os países africanos lusófonos no setor da investigação clínica?
– Este evento, integrado no amplo projeto que é o CT-Luso, materializa uma vez mais a cooperação entre Portugal e os países africanos lusófonos no domínio da investigação clínica, estreitando-a e reforçando-a. A presença dos mais altos responsáveis dos cinco países parceiros africanos por sectores-chave na promoção dos ensaios clínicos é, simultaneamente, testemunho das boas relações de proximidade existentes e oportunidades excelente para o seu aprofundamento e alargamento. Além disso, o envolvimento ativo das Embaixadas dos PALOP é um sinal político forte do seu empenhamento.
A Ordem dos Farmacêuticos de Portugal, enquanto entidade líder do projeto, trabalha em estreita colaboração com as restantes 24 entidades parceiras para garantir o cumprimento dos objetivos estabelecidos. Portugal assume, assim, um papel de facilitador e parceiro ativo na valorização do espaço lusófono como uma comunidade científica e regulatória coesa, capaz de afirmar-se no panorama internacional da investigação biomédica.
Iniciativas como o projeto CT-Luso são fundamentais para reforçar os laços entre os países lusófonos, promovendo uma maior proximidade, cooperação técnica e harmonização regulatória no sector da investigação clínica.
No âmbito do projeto CT-Luso realizou-se também um ciclo de formação que decorreu entre dezembro de 2024 e junho de 2025. O programa contou com a participação de formandos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e uma minoria de Portugal. No total, 234 participantes concluíram com sucesso a formação e 90% obtiveram classificações iguais ou superiores a “Bom”.
– Quais são os principais desafios enfrentados atualmente pelos PALOP na realização de ensaios clínicos?
– Os PALOP enfrentam vários desafios no desenvolvimento de estruturas éticas e legais robustas para a condução e regulação de Ensaios Clínicos (EC), nomeadamente lacunas legislativas, fragilidades institucionais, falta de regulamentação adequada, escassez de profissionais qualificados e procedimentos pouco consolidados.
A língua tem sido também uma das barreiras à capacitação dos PALOP, uma vez que a maioria das formações e materiais disponíveis são em inglês ou francês. Esta limitação dificulta o acesso à informação técnica atualizada, à formação especializada e à participação em redes internacionais de investigação. Acresce ainda a limitação de recursos técnicos e financeiros na área da investigação clínica e alguma instabilidade política que dificulta a implementação de reformas estruturais e regulamentares necessárias à melhoria do panorama e sustentabilidade dos projetos em curso.
Iniciativas como o CT-Luso procuram, precisamente, responder a estes desafios, promovendo a capacitação institucional, a harmonização legislativa e o reforço da cooperação entre os PALOP e Portugal, com vista a criar condições mais favoráveis para a realização segura, ética e eficiente de ensaios clínicos nos países parceiros.
– Quais os benefícios de ter ensaios clínicos desenvolvidos nos PALOP?
– Embora bastante diferentes entre si, em termos geográficos, demográficos, económicos e políticos, os PALOP enfrentam um desafio comum: um número muito significativamente baixo de realização de ensaios clínicos. Ainda assim, estes países apresentam números distintos no que respeita à realização de ensaios clínicos: por exemplo Moçambique conta com 155 registos, enquanto São Tomé e Príncipe não apresenta nenhum.
A realização de ensaios clínicos nos PALOP representa, assim, uma oportunidade de melhoria do acesso à inovação terapêutica e da qualidade da prestação de cuidados de saúde. Os ensaios clínicos contribuem para melhoria de infraestruturas de saúde e investigação, promovendo a modernização dos equipamentos e a implementação de boas práticas clínicas e laboratoriais. Promovem também a capacitação dos profissionais, contribuindo para a retenção de talento nos países, ajudando a mitigar o fenómeno do brain drain e a criar oportunidades profissionais no contexto nacional. Os ensaios clínicos são também uma importante fonte de receita para os países, fomentando o desenvolvimento económico e a inserção dos países em redes internacionais de investigação, atraindo investimento de consórcios internacionais. Um investimento de 1 € em ensaios clínicos rende, em média, 1,99 €, gerando um retorno de quase 200% através de efeitos diretos e indiretos.
– Que expectativas tem para o futuro da harmonização regulamentar lusófona após este simpósio?
– Com o Simpósio o projeto assinala uma importante etapa para a harmonização regulamentar lusófona, ao identificar desafios e oportunidades no quadro regulatório existente, formulando recomendações para suprir a eventuais lacunas identificadas e, garantido assim a criação e implementação de um quadro legislativo e institucional robusto. Mas este é apenas o resultado de um ano de trabalho e trata-se apenas de um primeiro evento público, sendo que o CT-Luso se desenvolve por mais dois anos e meio. Teremos assim oportunidade prosseguir na prossecução dos objetivos apontados, nomeadamente a promoção de um ambiente regulatório harmonizado, alinhado com as melhores práticas internacionais, permitindo um desenvolvimento mais seguro e eficaz da investigação biomédica e dos ensaios clínicos nos PALOP.
As expectativas para o futuro são, pois, promissoras, até porque o impacto do CT-Luso vai muito além da capacitação técnica, trazendo benefícios profundos para a modernização e estruturação das políticas de saúde e investigação nos PALOP. Este projeto pretende contribuir significativamente para o aumento da qualidade e da confiança na realização de ensaios clínicos, tanto no contexto local como no internacional. Ao fortalecer os quadros regulatórios e éticos da investigação biomédica, o CT-Luso não apenas impulsiona a capacidade científica desses países, mas também promove uma maior transparência e segurança nos processos de ensaios clínicos, tornando-os mais alinhados com as melhores práticas internacionais. Esse impacto resulta, assim, numa base sólida que favorece o desenvolvimento contínuo da investigação clínica e garante que os ensaios realizados nestes países sejam conduzidos com elevados padrões éticos e científicos.
Está previsto o acompanhamento contínuo das recomendações e propostas elaboradas, através de um contacto próximo com os profissionais e representantes de cada país. Os Embaixadores dos PALOP junto ao projeto terão um papel central neste processo, apoiando a monitorização da implementação das medidas e garantindo a continuidade do diálogo técnico e político iniciado no âmbito do simpósio.
O compromisso com a continuidade e sustentabilidade deste trabalho é claro, o CT-Luso pretende consolidar uma rede de cooperação lusófona sólida, que evolua para um verdadeiro espaço comum de investigação clínica, regulado de forma eficaz, ética e alinhada com os padrões internacionais.
O que precisa de saber sobre o Simpósio
O Simpósio Internacional Lusófono ‘Harmonização regulamentar e processual lusófona para Ensaios Clínicos: é possível?’ contará com a participação de uma comitiva de Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe composta por um jurista e pelos representantes das Autoridades Reguladoras do Medicamento e Comissões de Ética de cada país. Contemplará também uma mesa-redonda com os Embaixadores dos países africanos lusófonos com o objetivo de debater estratégias para uma maior atratividade da realização de ensaios clínicos nestes países.
No âmbito do Simpósio, será inaugurada a exposição “Sentidos da África Lusófona”, um momento de celebração da cultura e tradições dos PALOP.
A participação é gratuita, mediante inscrição prévia, de forma a assegurar a melhor organização do espaço. O evento será igualmente transmitido via streaming, com acesso reservado aos países lusófonos.
O Programa do evento, que vai acontecer na Ordem dos Farmacêuticos, em Lisboa, pode ser consultado aqui e a inscrição pode ser feita aqui.




