Além dos profissionais de saúde, as pessoas devem ter conhecimentos suficientes para avaliarem o seu próprio risco cardiovascular, defende o cardiologista Hélder Dores, co-autor do Estudo Radical (RAstreio Digital do rIsco CardiovascuLar). De acordo com as conclusões deste trabalho, nove em cada 10 inquiridos tem pelo menos um de oito fatores de risco cardiovascular.
As doenças cardiovasculares continuam a ser a principal causa de morte, tanto em Portugal como no mundo, em especial nos países desenvolvidos. De acordo com Hélder Dores, cardiologista e professor na NOVA Medical School, “em Portugal, cerca de 30% dos óbitos anuais são consequência de doenças cardiovasculares. Sobretudo AVC e enfarte”.
A maioria dos fatores de risco “estão relacionados com o nosso estilo de vida e são modificáveis”. A hipertensão arterial, o colesterol elevado, o sedentarismo, a obesidade, a diabetes, etc., “sendo muito comuns na nossa sociedade”, são a principal causa da “elevada prevalência de doenças cardiovasculares”.
“É certo que existem outros motivos menos comuns para explicar a elevada prevalência de doenças cardiovasculares na população, tais como alterações genéticas associadas ao desenvolvimento de algumas doenças, mas eu diria que o grande motivo é o facto de termos um mau estilo de vida”.
Na Cardiologia “há vários ‘assassinos’ silenciosos”
A hipertensão é chamada frequentemente de “assassina silenciosa”, mas o docente explica que não é a única condição que, sendo grave, pode não dar sintomas. “Infelizmente, há muitas situações em que o primeiro dia em que a pessoa tem sintomas também é o último”. Isso pode ocorrer, por exemplo, “no enfarte”.
A hipertensão e a dislipidemia “são, de facto, silenciosos”. Mas, na opinião do cardiologista, o colesterol elevado “ainda é mais grave”. A pessoa pode ter o colesterol sempre elevado ao longo da vida e nunca haver queixas, “até ao dia em que surge um problema grave, como o AVC ou o enfarte”.
Numa eventual listagem de “assassinos silenciosos» em Cardiologia, Hélder Dores não teria dúvidas «em colocar o colesterol à cabeça”. Se a pessoa não avaliar o colesterol regularmente, “quando finalmente perceber que está elevado, pode ter já uma doença grave que obrigue a um tratamento mais invasivo ou, no limite, ser tarde demais”.
Literacia em saúde aumenta a probabilidade de autorreportar o risco
A estratificação de risco em Cardiologia “é fundamental para identificar a probabilidade de um indivíduo desenvolver uma doença cardiovascular grave a médio-longo prazo” e permite, por outro lado, “uma abordagem mais personalizada e eficaz na prevenção e no tratamento”.
Para fazer essa estratificação, “usamos scores de risco”, nomeadamente o SCORE 2 e SCORE 2 OP, “recomendados quer pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia, quer pela Sociedade Europeia de Cardiologia”. Correspondem a “uma combinação de fatores de risco como o colesterol, a pressão arterial, sexo, idade, etc. Combinando as várias características de cada pessoa, conhecemos a probabilidade de o indivíduo vir a ter um evento fatal ou não fatal nos próximos 10 anos, e é em função dessa estratificação que são implementadas as medidas preventivas e terapêuticas adequadas a cada caso”.
“O farmacêutico, como qualquer profissional de saúde, pode fazer a estratificação do risco, desde que tenha à sua disposição todas as variáveis que entram na sua determinação”. Aliás, a tendência vai mesmo no sentido de “ser o próprio doente a ter a noção de como avaliar o risco”.
Essa foi a grande inovação do Estudo Radical (RAstreio Digital do rIsco CArdiovascuLar), que registou a participação de 4.149 adultos entre os 40 e os 69 anos, sem doença cardiovascular conhecida.
Estudo Radical avalia fatores de risco autorreportados por via digital
Esta investigação, realizada pelos cardiologistas Hélder Dores e José Ferreira Santos, insere-se no projeto Cardio da Vida, uma plataforma de literacia em saúde na área cardiovascular (www.cardiodavida.pt). De acordo com as conclusões retiradas do questionário digital para compreender o risco cardiovascular em Portugal, 9 em cada 10 dos inquiridos tem pelo menos um dos oito fatores de risco cardiovascular estudados (alimentação desadequada, inatividade física, tabagismo, horas de sono, obesidade, hipertensão arterial, diabetes e colesterol elevado).
A opção de estratificar o risco à distância, por via digital, conseguindo alcançar mais pessoas, “pode ajudar o próprio doente a tomar consciência do seu risco e facilitar a deteção precoce”, defende Hélder Dores.
Ainda ao nível dos fatores de risco, o cardiologista refere os dados recolhidos sobre a inatividade física, com uma prevalência de 33,7%, e as horas de sono, um dado “muito relevante, embora esquecido, como fator risco cardiovascular”. Das pessoas que responderam, mais de metade (58,4%) dormiam menos de sete horas por noite.
Na opinião do cardiologista “o ónus da saúde não é só dos profissionais de saúde”. Cada um “deve fazer a sua parte na prevenção da doença”. Em termos clínicos, “o facto de detetarmos uma patologia mais precocemente, melhora o prognóstico porque possibilita a implementação de medidas terapêuticas mais rapidamente. Por outro lado, também se ganha tempo, o que tem um impacto clínico positivo para o doente”.
Em relação à contribuição dos farmacêuticos comunitários neste domínio, o docente da NOVA Medical School assinala a importância da adesão do doente à terapêutica. “Este é um aspeto importante com o qual nos debatemos e no qual ainda estamos longe de conseguir bons resultados”. Dando o exemplo da dislipidemia, “existem muitas condicionantes e doentes que não tomam os medicamentos porque acham que fazem mal”.
O papel do farmacêutico, “ultrapassa o simples ato de fornecer os medicamentos”, afirma. Também ajuda a “detetar potenciais descompensações e efeitos adversos, duplicação de receitas, e identificar sinais de alerta mais precocemente”.
Especialidade está em constante evolução
A Cardiologia “é uma especialidade que se caracteriza por muita evidência científica, constante mudança e evolução”, diz o docente que, no que diz respeito ao diagnóstico, destaca por exemplo os avanços nas técnicas de imagem. Estas permitem agora “detetar alterações que não são visíveis nos exames convencionais”. Consequentemente, “tornam possível intervir mais cedo em termos da terapêutica e melhorar o prognóstico”.
Os biomarcadores são outro avanço significativo que, hoje em dia, “nos permitem diagnosticar de forma diferente a gravidade e o prognóstico de algumas doenças, como é o caso da doença coronária, insuficiência cardíaca, etc.”.
No que diz respeito diretamente ao coração, e para além da frequência cardíaca, vários equipamentos permitem detetar arritmias, nomeadamente fibrilhação auricular, e têm recebido a aprovação das entidades reguladoras, nomeadamente da FDA (Food and Drug Administration) e CE (Conformité Européenne).
A utilização de wearables, smartwatches e outros dispositivos eletrónicos no dia-a-dia, “já com algoritmos muitas vezes baseados na Inteligência Artificial, permitem-nos fazer diagnósticos com elevada acuidade em condições que, por vezes, são difíceis de diagnosticar de outra forma quando os sintomas surgem subitamente, sem ninguém estar à espera”.
No que se refere ao tratamento, os avanços também têm sido “imensos”. Centrando-se nos medicamentos, Hélder Dores afirma que “estes têm melhorado comprovadamente o prognóstico dos doentes em várias doenças como, por exemplo, na área da insuficiência cardíaca, da diabetes, da dislipidemia ou da obesidade, reduzindo o risco de morte e de eventos cardiovasculares”.
Em termos genéricos, o cardiologista refere que a evolução se caracteriza por “fármacos com uma maior precisão”. A curto prazo, “teremos, provavelmente, uma capacidade ainda mais precisa e menor risco de efeitos adversos com a terapêutica genética, o que irá ter um efeito ainda mais impactante no futuro”.




