Discurso cheio, cabaz vazio. 97

Em casa não ofereço prendas…ou melhor, ofereço o dinheiro que essas prendas custaram pois fartei-me de andar a dizer “Se não gostares, aqui está o talão de troca”. É assim há anos e pela minha parte não mudará. Estraga-se a surpresa aquando do rasgar do papel e do retirar do laço, mas ganha-se na efetividade e utilidade do que se oferece. Ganharia eu um prémio de romantismo ou de “comprador de prendas do mês”? Não. Mas não me preocupa, as minhas expectativas nesse aspeto são baixas.

A minha despreocupação com isto vem por dois lados. Há sempre quem as compre e nunca faltaram “clientes” satisfeitos.

No entanto, em ambiente empresarial, não devemos ser assim. Porquê? Porque há decisões estratégicas que custam milhões e deixam pouca marca e há decisões de baixo custo que deixam uma marca profunda, precisamente porque revelam aquilo que as organizações pensam quando acham que ninguém está a avaliar.

O cabaz de Natal pertence claramente à segunda categoria.

Em 2025, várias empresas optaram por não o oferecer, quebrando tradições com anos (por vezes décadas) de continuidade. A decisão foi apresentada como racional, moderna, alinhada com novos tempos. Em alguns casos, até como sinal de maturidade organizacional. Outros casos, apenas gestão de Excel.

É curioso como a palavra maturidade surge tantas vezes quando se quer justificar um gesto que, no fundo, empobrece a relação.

Convém esclarecer desde já: isto não é sobre saudosismo nem sobre resistência à modernidade. O cabaz nunca foi um benefício relevante. Foi sempre um sinal. Um gesto simbólico que dizia: “o ano acabou e nós lembrámo-nos de si!”.

Quando uma empresa decide acabar com esse ritual, sobretudo sem qualquer cuidado na forma, está a emitir outro sinal, menos intencional, mas muito mais eloquente: as pessoas são suficientemente importantes para produzir, mas dispensáveis no fecho das contas do ano.

E isso não é moderno. É apenas frio.

Uma das grandes ilusões da gestão é acreditar que certas decisões são neutras. Que cortar um ritual não tem impacto porque “as pessoas entendem”. Entendem, sim, mas nem sempre da forma que a organização imagina.

Entendem que:

  • há tradições que valem enquanto são convenientes,
  • o reconhecimento é condicional,
  • o vínculo emocional é facilmente negociável.

Nenhuma destas leituras aparece em relatórios. Todas aparecem no comportamento.

Esta poupança simbólica traz, inevitavelmente, um custo invisível. Empresas que quebram este tipo de tradição raramente perdem talento no dia seguinte. Perdem algo mais difícil de recuperar: boa vontade. Perdem aquela margem invisível que faz alguém ficar mais meia hora, resolver mais um problema, proteger a empresa quando ninguém está a ver.

O que ganham em poupança direta, perdem em micro-compromisso diário. E isso acumula.

O cinismo não nasce de grandes injustiças. Nasce da repetição de pequenos sinais que dizem: “Isto já não é como era e não para melhor”.

É particularmente interessante observar como a ausência do cabaz é, muitas vezes, embrulhada num discurso de modernidade. Como se manter rituais fosse incompatível com organizações ágeis, digitais e orientadas para o futuro.

Não é.

O que é incompatível com o futuro são organizações que não compreendem símbolos, que subestimam rituais e que acreditam que cultura se sustenta apenas em discursos e valores colados na parede.

Cortar sem explicar não é maturidade. É um desligar emocional travestido de eficiência.

Curiosamente, as empresas que mantiveram o cabaz em 2025, mesmo ajustando o formato ou o valor, não o fizeram por tradição cega. Fizeram-no porque perceberam algo simples: há momentos em que o gesto vale mais do que a justificação.

Não é coincidência que estas organizações tendam a ter equipas mais estáveis, menos ruído interno e um sentido de pertença que não precisa de ser constantemente comunicado.

O Natal tem esta capacidade incómoda de expor incoerências. Durante o ano fala-se de pessoas, cultura, valores e proximidade. Em dezembro, essas palavras são testadas em gestos concretos. E quando o gesto desaparece, a narrativa sofre.

2025 mostrou que algumas empresas ainda não perceberam que cultura não é o que se diz quando tudo corre bem. É o que se mantém quando é fácil cortar.

Talvez em 2026 algumas empresas voltem a oferecer cabaz. Talvez não. Mas convém não confundir poupança com inteligência cultural.

O cabaz não é um custo relevante. É um termómetro.

E quando as organizações ignoram o termómetro, não devem estranhar quando a febre aparece noutros indicadores menos visíveis, menos controláveis e muito mais difíceis de corrigir.

Eu recebi o meu cabaz. Foi um ano dificil? Qb. Soube-me bem? Lindamente.

Porque no fim, o Natal passa. Mas as mensagens e a memória ficam.

Há coisas tão simples e fáceis na vida, para quê complicar?

Boas Festas!

João Carlos Serra
Commercial Operations Director & Senior Healthcare Consultant HCO, Industry Investors and Pharma