(Ainda) A Lei de Bases da Saúde 1695

A discussão da lei de bases da saúde ganhou novo relevo com a apresentação da proposta do Governo. Encontramos nessa discussão duas linhas ao longo das quais se encontram as posições de divergência.

A primeira linha de divisão de posições é a linha ideológica, quanto à prestação de cuidados de saúde pelo setor público, com maior ou menor exclusividade. Encontramos aqui as posições relativas à exclusividade de participação num ou noutro lado (público vs privado) pelos profissionais de saúde; o interesse em ter, ou não, parcerias público-privadas; e o papel da prestação privada como supletiva (ou concorrencial) do setor público, por exemplo. É uma discussão centrada na propriedade do prestador de cuidados de saúde, e tem uma base ideológica que por vezes parece mesmo querer propositadamente ignorar qualquer evidência ou contra-argumento.

A segunda linha divisória é menos óbvia. É a linha sobre se a lei de bases da saúde se deve centrar nos direitos e deveres dos cidadãos, e onde os vários instrumentos possíveis, incluindo o Serviço Nacional de Saúde, se devem inserir, ou se deve ser sobretudo uma lei de bases do Serviço Nacional de Saúde, enquanto mecanismo de prestação de cuidados de saúde à população (incluindo os cuidados de prevenção e apoio à promoção da saúde por via de decisões individuais de estilos de vida saudáveis). Esta segunda linha é menos óbvia mas é igualmente importante. Esta é a linha onde é mais clara a diferença entre a proposta da Comissão liderada por Maria de Belém Roseira e a proposta do Governo, e várias das posições expressas. Aliás, quando a discussão se coloca sobretudo na primeira linha divisória, de natureza ideológica, normalmente situa-se ao nível do que é o Serviço Nacional de Saúde, enquanto entidade prestadora de cuidados, e não ao nível dos direitos dos cidadãos (pois, implicitamente ou explicitamente, assume que a única forma de garantir esses direitos é através da prestação pública de cuidados de saúde).

Há todo o interesse em que esta segunda linha de discussão não seja esquecida. O definir que direitos e deveres têm os cidadãos residentes em Portugal em termos de saúde é naturalmente central para depois definir os mecanismos pelos quais podem ser garantidos esses direitos e proporcionado o exercício dos deveres.
O primeiro desses direitos é, reconhecidamente, o da proteção da saúde – que envolve, em termos técnicos, mecanismos de seguro, de partilha solidária dos custos com a prestação de cuidados de saúde. Ora, essa partilha solidária não é valorizada apenas em Portugal. Outros países encontraram formas diferentes de a garantir, nuns casos com a criação de instituições como o Serviço Nacional ed Saúde, noutros casos com a regulação (em maior ou menor detalhe) de entidades seguradoras privadas (com ou sem fins lucrativos).

Assim, e em primeiro lugar, a opção por um Serviço Nacional de Saúde como mecanismo de seguro, e de proteção associada, é algo que não foi seriamente disputado na discussão pública que tem sido realizada. Assegurado esse elemento de proteção, e de natureza universal no sentido de cobrir todos os residentes em Portugal, o passo seguinte é a discussão de quanto deve a lei de bases definir quanto à melhor forma de prestar os cuidados assegurados por essa proteção. E é aqui que entra a principal linha de divisão ideológica, que toma como objetivo a natureza da propriedade de quem presta os cuidados de saúde, em lugar de discutir que forma de organização melhor garante os direitos definidos no primeiro passo. Ignorar que a prestação de cuidados de saúde é um instrumento e não um fim em si mesmo pode facilmente levar a opções que podem ser lesivas dos próprios objetivos de proteção da saúde (entendidos em sentido lato).

Se é defensável, como é feito por alguns comentadores, que não se pode deixar de ter escolhas ideológicas, então devemos ter uma noção clara da menor flexibilidade, e dos custos possivelmente associados, que possa ser introduzida por esse elemento ideológico (seja ele de um ou de outro lado do espetro politico) na escolha dos instrumentos a usar. Este aspeto é particularmente relevante na área da saúde onde os problemas de gestão na prestação de cuidados de saúde são complexos, têm diferentes naturezas (desde prestar cuidados de saúde sem desperdício até prestar os cuidados de saúde que são realmente necessários e úteis) e onde não há «verdades universais» sobre a melhor forma de organizar a prestação de cuidados para satisfazer os princípios de proteção e de direitos dos cidadãos residentes.

Pedro Pita Barros

Professor de Economia | Universidade Nova de Lisboa

(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)

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