A farmacêutica que corre maratonas… por si, pela classe e pelas causas que apoia 3512

A farmacêutica Maria João Saleiro cresceu numa família de profissionais de saúde e desde cedo foi sensibilizada para “o valor do cuidado ao próximo”. O seu pai era médico de família, “um verdadeiro médico de proximidade, profundamente dedicado aos seus doentes e à comunidade. Foi ele quem me transmitiu o exemplo de humanismo e entrega que me marcou profundamente”.

Para Maria João Saleiro, “a farmácia surgiu como uma forma de dar continuidade a esse legado, mantendo o contacto direto com as pessoas e contribuindo para o seu bem-estar de forma próxima e acessível”.

Atualmente é diretora técnica na Farmácia de Baguim, em Baguim do Monte, um desafio “muito enriquecedor”. A responsabilidade é grande, “mas liderar uma equipa dedicada, com quem criei uma relação de grande confiança, torna tudo mais leve. Sinto muitas vezes que estou a trabalhar com amigos e isso faz toda a diferença no dia a dia. O ambiente é de entreajuda e profissionalismo, e poder contribuir para o bem-estar da comunidade local dá um enorme sentido ao que faço”.

 

Causas sociais

“A farmácia onde trabalho integra o grupo Allpharma, cuja gerência é muito atenta a causas sociais e tem sido um grande apoio”.

Por isso, quando souberam da sua participação na Maratona de Londres, “quiseram envolver-se ativamente”, conta Maria João Saleiro, acrescentando que “no mês de dezembro, promovemos o ‘Natal Solidário’ na farmácia: todos os serviços farmacêuticos prestados nesse período reverteram para a luta contra o cancro infantil”.

No final, foi doado “um valor muito bonito à World Child Cancer (WCC), o que me emocionou profundamente e reforçou o orgulho que sinto em fazer parte desta equipa”, revela a farmacêutica.

 

Em entrevista ao NETFARMA, a diretora técnica da Farmácia de Baguim conta por que razão começou a correr e pormenores da sua participação em maratonas, nomeadamente na de Londres, sendo que completar o circuito das World Marathon Majors passou a ser um objetivo pessoal.

 

– Como surgiu o seu interesse pela corrida e pelas maratonas?

– A corrida surgiu numa fase muito delicada da minha vida, no meu pós-parto e precisamente quando o meu pai atravessava a fase terminal do seu cancro. Foi um período profundamente desafiante, marcado por emoções intensas e contrastantes. Correr tornou-se o meu escape, o meu espaço. Era ali, quilómetro após quilómetro, que conseguia processar a dor, libertar a ansiedade e reencontrar alguma paz.

Mais do que uma atividade física, a corrida foi uma forma de me reerguer e de ser ativa na procura do meu equilíbrio emocional e da minha saúde mental. Aos poucos, transformou-se numa paixão e numa ferramenta essencial para o meu bem-estar, hoje é parte integrante da minha identidade.

 

– Como concilia a vida familiar, a corrida/maratonas com a exigência da sua profissão?

– Com muito planeamento, apoio da minha família e uma boa dose de resiliência. A minha mãe é fora de série na ajuda e no cuidado e junto com o meu companheiro e os meus filhos são o meu pilar; e conseguimos sempre encontrar um equilíbrio entre os treinos, o trabalho e os momentos em família. Nem sempre é fácil, mas é possível, e muito recompensador.

 

–  Como tem sido o seu percurso no mundo das corridas até aqui?

– Tem sido um caminho desafiante, mas extremamente gratificante. Quando decidi começar a correr ‘mais a sério’, juntei-me a uma treinadora de corrida, Diana Fernandes (@lacoachdiana), e atualmente faço parte de uma equipa, A Run&Win[e]. Viver a corrida em equipa torna-se um percurso mais gratificante e desafiador.

Cada prova trouxe aprendizagens, superações e um crescimento pessoal enorme. Depois das primeiras corridas, fui ganhando confiança e vontade de ir mais longe. Comecei a participar em provas de 10km, passei para as meia-maratonas. As maratonas vieram naturalmente, como uma extensão desse compromisso comigo mesma.

Neste momento, preparo-me para a Maratona de Chicago, em outubro, e para a Maratona de Tóquio, em março do próximo ano. Completar o circuito das World Marathon Majors passou a ser um objetivo pessoal, uma espécie de tributo à minha própria transformação e resiliência.

 

– Quais foram os maiores desafios e conquistas nas maratonas de Berlim (2024) e Londres (2025)?

– A Maratona de Berlim foi a minha primeira maratona, e a minha primeira Major, e isso por si só já foi um desafio enorme. Foi a concretização de um sonho, mas também o início de uma jornada que me colocou muitas vezes à prova, física e mentalmente. Lidar com a incerteza, com o medo de não estar à altura e com o peso da responsabilidade foi desafiante. A maior conquista em Berlim foi mesmo perceber que era capaz.

A Maratona de Londres teve um peso emocional muito forte e foi, ao mesmo tempo, uma verdadeira celebração da solidariedade. Londres tem uma conotação de caridade muito vincada, é uma verdadeira festa da corrida, onde cada quilómetro é marcado por homenagens comoventes, música, cartazes e histórias de superação. É impossível correr ali sem se emocionar. Este ano, a prova entrou para o Guinness, tanto pelo número de corredores que terminaram a maratona como pelo valor angariado em donativos num único evento. Foi um orgulho fazer parte de algo tão grandioso. Para mim, pessoalmente, foi ainda mais especial, porque corri em homenagem ao meu pai e a apoiar a World Child Cancer. Terminar aquela prova, com o coração cheio, foi uma das maiores conquistas da minha vida.

Antes da prova, em Londres, tive um breve encontro com o Senhor Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, que me desejou toda a boa sorte, me encorajou para cortar a meta e sobretudo usufruir daquela experiência.

Além de ter ido representar a World Child Cancer, também foi com muito orgulho que corri com a camisola da OF, em representação da nossa classe, muito orgulhosa que não tivessem ficado indiferentes à causa.

 

– Nas provas em que tem participado tem apoiado sempre uma causa?

– Na verdade, a Maratona de Londres foi a primeira prova em que fui apoiar uma causa, mas acabei a corrida com a certeza de que quero repetir esta jornada tão enriquecedora.

Junto com os meus amigos e a minha comunidade, conseguimos angariar mais de 4000€ para a WCC, o que é prova de que quando nos mobilizamos somos capazes de feitos fantásticos, nunca devemos subestimar o poder da nossa voz, e a certeza de que o povo português é bastante solidário.

Correr, para mim, vai muito além do exercício físico. É uma forma de dar sentido ao esforço, de transformar algo pessoal em algo que possa também fazer a diferença na vida dos outros. Como profissional de saúde, acredito que temos essa missão: cuidar, apoiar, estar presentes, mesmo fora do ambiente clínico. E correr por uma causa é isso mesmo.

 

– Por que razão apoiar a World Child Cancer na Maratona de Londres?

– A escolha da World Child Cancer foi muito emocional. Após a morte do meu pai, senti uma necessidade imensa de transformar a dor em algo construtivo. Como mãe, tocou-me profundamente saber que muitas crianças com cancro, especialmente em países em desenvolvimento, não têm acesso ao diagnóstico e tratamento adequados. Apoiar esta organização foi a minha forma de lutar por um mundo onde todas as crianças, independentemente do local onde nascem, tenham direito à esperança e à vida.

Acredito que podemos tornar o nosso luto e a nossa dor em algo positivo para alguém. E que podemos ser exemplo de como dar a volta por cima. A vida pode continuar a ser muito bonita, e muito generosa, mesmo com os golpes e as perdas que vamos experimentando. A Maratona de Londres foi, para mim, uma afirmação disso mesmo: correr com o coração em pedaços, mas com os olhos postos na esperança. E fazer isso ao lado de milhares de pessoas que também corriam por causas maiores foi algo absolutamente transformador.

 

– Está a preparar-se para a Maratona de Tóquio em 2026; como está a correr essa preparação?

– Quando terminei a Maratona de Londres, já tinha a de Tóquio marcada, o plano era fazer uma pequena pausa nas maratonas, melhorar tempos nas distâncias mais curtas, e preparar-me com calma até março de 2026. Mas, sinceramente… percebi rapidamente que não aguentava tanto tempo sem sentir aquela excitação única de uma maratona. Então, como quem toma uma decisão perfeitamente racional (ou não!), inscrevi-me na Maratona de Chicago, que será já em outubro de 2025. Foi mais forte do que eu!

Neste momento, estou a preparar-me com esse novo objetivo em mente. A preparação está a correr bem, sempre com o equilíbrio possível entre a vida familiar, o trabalho na farmácia e os treinos. E, sim, continuo com o propósito de associar a maratona a uma causa solidária, e ainda estou a escolher qual será para Chicago, mas essa componente é essencial para mim. Dá mais sentido a cada quilómetro e transforma o esforço individual numa corrente de apoio coletivo.

 

– De que forma a prática regular de corrida influencia a sua performance e bem-estar no ambiente de trabalho?

– A corrida é o meu momento de equilíbrio. Ajuda-me a manter a mente clara, a gerir melhor o stresse e a tomar decisões com mais serenidade. No meu trabalho como farmacêutica e diretora de farmácia, é essencial manter a energia e a empatia. A corrida dá-me isso: resiliência, disciplina, capacidade de superação e uma enorme sensação de bem-estar. Sinto que sou melhor profissional, e melhor pessoa, quando me permito cuidar também de mim.

 

– Quem são as suas maiores inspirações, tanto na vida pessoal quanto profissional?

A minha maior inspiração pessoal é o meu pai, o grande amor da minha vida, o meu melhor amigo. Foi médico, um homem de princípios, apaixonado pela vida, pelo desporto e pela natureza. Ensinou-me a olhar para os outros com empatia e a viver com integridade. Levo-o comigo em tudo o que faço.

No plano profissional, inspiro-me nas pessoas com quem trabalho todos os dias: colegas farmacêuticos, profissionais de saúde, mas também os utentes que confiam em nós. E admiro profundamente todos os que conseguem, com pequenos gestos diários, mudar o mundo à sua volta. São essas pessoas anónimas que me motivam a continuar.

 

Créditos: Imagens cedidas por Maria João Saleiro